segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Uma pérola

Encontrada no fundo do mar

Para escutar durante a noite mais longa…



Vive la fête
Noir Desir

sábado, 22 de dezembro de 2007

Postais

É, regra geral, uma seca a quantidade de postais de Natal que recebemos nesta altura. Uns vêm do banco, outros das seguradoras, até o meu contabilista me enviou um (obrigado Nuno).

Imensos vêem pela net. Os piores são aqueles que são enviados através de sites, os quais podem ser personalizados mas ficamos automaticamente anexados à base de dados da empresa que não pára de nos chatear com newsletters de actualizações permanentes e prioritárias.

Após uns quantos cliques cheguei a alguns deliciosos. São de um caricaturista Argentino radicado em Espanha. Em Espanha, não. Na Galiza!

Chama-se Omar Perez e segue a mais bela tradição de Quino.

Eu enviei-os para quem mais gostava!


Referência às alterações climáticas e à urgência do protocolo de Quioto


Sobre os conflitos no Médio Oriente

Deliciosos, não?

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Surpresa!

Num dos devaneios de Natal, aconteceu a brilhante ideia de presentear alguns casais amigos com produtos de um armazém asiático recentemente descoberto pela M.

Mesmo com a responsabilidade acrescida pelo tamanho da barriga, lá veio carregada de caril, arroz, picante, pão “papad”, esparguete de arroz, cogumelos secos e muitos molhos de soja misturados com os seus irrequietos rebentos.

Quando embrulhámos todos os ingredientes nos seus respectivos recipientes, sobrou um pequeno bolinho, espécie de bolacha envolvido num papel de cor dourado brilhante.

Surpresa! Era um bolinho da sorte!

E eu que sempre desejei saber como eram, ao que sabiam, qual a sua textura… tantos casais concluíram as suas refeições em Chinatowns de cartão com um bolinho da sorte, antes de se beijarem apaixonadamente para as câmaras montadas em Hollywood.

Yupppi, finalmente vou ver como são!


São rijos e sabem a bolacha maria, mas um pouco mais doces. Lá dentro vinha o famoso papel vegetal (tal como o dos bombons italianos) com a frase da minha fortuna.

“The spirit is like a parachute, which is useful only when it is open.”

Gostei, e deu-me que pensar…

Afinal foram duas as surpresas de Natal!

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

GRILOS

Foi no longínquo ano de 1906 que ambos nasceram.

Conheceram-se na aldeia onde sempre viveram e onde hoje estão sepultados.

O primeiro nasceu em Março, mais precisamente no dia 7. Chamaram-no de António e herdou apenas o nome do pai. Silva. Para se distinguir dos outros 3 Antónios da Silva que viviam em Vinhó, Freguesia de Vila Cova, Conselho de Arganil, foi necessário acrescentar nos correios o seu alcunho entre parêntesis. Passou a ser o António da Silva (Grilo). Os outros não fugiram à maldição. Um ficou (Pinheiro) e outro (Majerico).

Dois meses menos um dia depois nasceu a Palmira. Ela teve direito a mais nomes e ficou do Carmo Lopes.

Estive presente nas suas bodas de ouro, na pequena capela de Vinhó, juntamente com os seus doze filhos e trinta e dois netos. Não consegui contar os bisnetos. Agora são mais. Muitos mais…

Consta da boca dos antigos que, durante a segunda guerra mundial, tempos da fome e do racionamento, as poucas sacas de farinha que chegavam à aldeia iam em primeiro lugar para os grilos, tal era a necessidade de alimentar as bocas que iam surgindo.

A dificuldade não foi só em relação à alimentação. Também foi difícil escolher nomes para tantos filhos: Benvinda, Silvéria, Victor, Nautílio, Jorge, Diamantino, Daniel, João, Odete, Ester, Elisabete e Margarida. Distam 20 anos do primeiro ao último. O meu pai foi o oitavo, mas ficou no meio em termos de tempo. Tem menos dez anos que a Benvida e mais dez do que a Guida.

Ao que parece faziam as delícias das comissões de festas da altura. Quando chegavam enchiam os bailes e tanto rapazes como raparigas das várias aldeias que visitavam tinham par para dançar.

António da Silva (Grilo) ficou conhecido pelos bois. Na falta dos tractores, eram os homens dos bois que corriam as terras, sulcando-as para as sementeiras. O meu avô foi um desses. Mais tarde, quando as pernas já davam de si e as máquinas venceram a guerra aos animais, dedicou-se às cestas. Primeiro de madeira e depois de tiras de plástico. Coloridas e duras, que arranhavam as mãos e picavam. Ainda tenho uma das últimas que entretanto passei à L. Sempre preferi as de madeira, que ele cuidadosamente trabalhava na “loja” que dantes era dos porcos. Rasgava longas tiras de um pedaço de nogueira, e entrançava-as até formarem o suporte dos peixes que peixeiras levavam à cabeça ou de batatas que mães transportavam debaixo das axilas. Adorava passear por entre as aparas que alcatifavam o chão frio e se colavam às calças de bombazina.

Bebeu até não poder mais e os seus últimos desejos foram cumpridos na visita à feira dos bois, onde opinava sobre a qualidade dos bichos com uma voz consumida pelos copos que entretanto bebia com os amigos.

A minha avó pouco mais fazia do que cuidar das doze crianças, dar comida ao gado, cuidar do campo, lavar e cozer roupa, cozinhar, debulhar feijão, plantar batatas, espalhar estrume, colher couves, cozinhar o mais belo guisado de galinha com esparguete que comi até hoje.

A casa deles tinha buracos em todas as portas. Eram buracos em forma de “U” invertido. Trocavam calor por companhia. Era agradável sentarmo-nos à lareira, com os joelhos a coçarem as panelas de ferro com sopa sempre feita e água sempre quente, e os pés a serem sacudidos pelos gatos. A casa de banho era um buraco que dava para a “loja dos bois”, onde o nosso estrume se juntava ao deles.

Apesar de nem todos os filhos terem estado presentes, nem tão pouco todos os netos, alguns estiveram comigo este fim-de-semana. Sempre fomos unidos e gostámos uns dos outros. Ainda estamos todos vivos, o que de si é surpreendente. Mas o mais surpreendente foram aqueles que, não sendo grilos de sangue, são-no de direito. Casaram connosco e connosco tiveram filhos. Este fim-de-semana, eles juntaram-se e gritaram bem alto que eram grilos.

E, uma vez mais, a liga da noiva ficou na mão dos grilos.


Páscoa de 1964

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Está quase...

Pois é…

E agora… quando telefonar para casa dos meus pais, quem irá atender?

Passarei a ter de telefonar também para casa dela?

Como irão ser os almoços de fim de semana?

Engraçado como o problema reside em mim e não nela. Sou eu é que não a terei do outro lado do telefone. Sou eu é que terei de almoçar noutro local. Sou eu é que não a terei só para mim (se é que alguma vez a tive).

Uma vez mais sinto que, ao contrário do que todos supomos, temos saudades do que vamos perder.

Tenho a certeza de que ela será feliz. Todos o somos, por breves instantes. E não creio que esteja relacionada a felicidade com o que consta na parte de traz do BI.

Este sábado disfarçarei as lágrimas com copos de vinho, cerveja, champanhe ou o que quer que seja!

Força, minha linda!

sábado, 1 de dezembro de 2007

Parabéns

Fizeste um ano e eu fiz mais um.

Um brinde a ti e outro a mim.

Que sejamos os dois muito felizes, que contemos muitos e que os outros o vejam.

Assopremos as velas, os dois ao mesmo tempo, e peçamos um desejo. Um desejo secreto que não se pode contar sob pena de não se realizar. Um desejo só nosso, inconfessável, insondável, discreto.

Como o de para o ano termos um bolo com velas e força para as soprar.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Cassete Pirata

Já assisti a umas seis ou sete ecografias.

O processo é sempre o mesmo. Pedem para ela desapertar a roupa e colocam-lhe um papel azul reciclado (pelo menos tem esse aspecto) na zona púbica, mal se deita na marquesa de napa preta. Colocam-lhe um líquido viscoso na barriga, estilo gel para o cabelo, mas sem o cheiro característico deste, e, então, a médica ginecologista (ou obstetra) pega no scanner e passa-o rapidamente por toda a superfície do ventre dilatado pelo novo ser que procura crescer em ambiente condicionado, de forma a espalhar o gel para facilitar a progressão do aparelho em forma de “T”.

Nesse momento, e só então, reparamos que a médica se transforma em comandante de avião comercial. A sala escurecida é agora um cockpit, o monitor um radar, as luzes são alarmes, os botões ficam ignições e os interruptores comandos de flaps.



No radar surgem imagens imperceptíveis que só a comandante percebe. Vêm-se linhas que ela desenha e diz coisas que a co-piloto escreve num computador, suspeito eu que seja o diário de bordo.

A comandante vai falando e tentando descrever o que só ela consegue ver: Aqui está a coluna, os hemisférios do cérebro, os rins, o fígado…

Maravilha… quem diria…

A ecografia, como o próprio nome indica, baseia-se no princípio físico do eco, i.e., o captar do reflexo da onda provocada pelo som, quando esta encontra no seu percurso uma barreira ou um obstáculo (que deverá ser denso e feito de um material que não absorva as ondas). O ser humano apenas consegue captar o reflexo da onda do som, se esta encontrar um obstáculo a uma distância superior a 17 metros, uma vez que o ouvido e cérebro humanos apenas conseguem distinguir sons com uma diferença de 0,1 segundos. Esta máquina não. Ultrapassa as limitações da nossa obsoleta condição e eleva-nos a um estado de evolução bio-tecnológico ímpar, qual super homens com mais sentidos do que os outros.

A única coisa que me leva a acreditar que, das seis ou sete vezes, não estive sempre a ver a mesma cassete previamente gravada e sistematicamente reproduzida para os sucessivos casais que, ordeiramente e em silêncio, se vão iludindo perante uma máquina/cockpit (não sem antes serem vítimas de uma dramatização convincente - despir, colocar gel para o cabelo, o pormenor do papelinho azul), são as impressões oferecidas e que podemos levar para casa, em papel de fax, com imagens de faces e membros dificilmente reconhecíveis como sendo de um embrião humano.



Mas mesmo estas, apesar de diferentes de ecografia para ecografia, podiam já ter sido impressas, ou não?

Afinal, quem se dá ao trabalho de colocar gel e papelinhos azuis…

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

R-X

FAÇA O FAVOR DE RETIRAR TODOS OS OBJECTOS METÁLICOS

Foi em Novembro de 1895, mais precisamente numa 6ª feira, que o professor de física Wilhelm Conrad Röntgen, alemão, se encontrou acidentalmente com um novo tipo de raios. Investigando os invisíveis raios produzidos num díodo (feixes de electrões que se movem de um cátodo para um ânodo num tubo hermeticamente fechado) reparou que estes criavam uma feixe luminoso quando escurecidos. A sua experiência consistia em criar uma “janela” de alumínio por onde os raios pudessem sair e uma folha de cartão pintada com barium platinocyanide onde os mesmos incidiriam. Ora, ao incidirem nessa folha de cartão, Röntgen reparou que criavam uma luz fluorescente nada comum. Estavam descobertos, acidentalmente, os raios x.

SIM, SIM, A ALIANÇA TAMBÉM…

O nome dado a estes raios, que mais tarde iriam ficar mundialmente conhecidos e serviriam de imaginários a um sem número de romances, ficções e heróis da banda desenhada, não foi, tal como a descoberta dos mesmos, propositada. Pura e simplesmente ficaram designados pela expressão matemática do número desconhecido.

Foram 15 dias de intensas experiências, onde o professor passou a dormir no laboratório, escrevendo incansavelmente as suas notas.

Sensivelmente duas semanas após a descoberta da estranha luz fluorescente, tirou a primeira imagem por intermédio dos novos raios. A imagem foi a da mão da sua esposa, Anna Bertha. Consta que, ao observar a imagem do esqueleto da sua própria mão, Anna terá exclamado: “Eu vi a minha morte!”



AGORA DEITE-SE DE BARRIGA PARA CIMA. TEM A CERTEZA QUE NÃO TEM BOTÕES METÁLICOS?

Num destes fins de semana estive com a malta da minha rua. Fomos todos beber e comer a uma cervejaria dos subúrbios. O motivo foi o casamento do Frederico (ou Fred, como é conhecido pelos que cresceram juntos). Eu não fui convidado, claro, pois sou de uma geração mais velha. Quem é da geração dele são os nossos irmãos. E esses foram-no.

No final de um dia de verão, com as luzes dos candeeiros já acesas, alguém lançou uma bola à imaginária barra riscada entre as portas dos prédios. Eram tempos em que os carros não ocupavam todos os lugares de estacionamento. O Fred, miudito, estava à baliza e gritou 3 vezes: “Foi à ‘raba!’”. Um dia depois do seu casamento ainda é conhecido por isso. Há cicatrizes que a vida não gosta de apagar.

AGORA FIQUE QUIETO, SIM?

O convite veio do Miguel. O Miguel era o meu vizinho de baixo.

Pouco depois de se ter mudado para o nosso bairro, enganou-se e foi tocar à nossa porta. Quando a abrimos, o pequenito Miguel, assustado, desatou a chorar. Os pais não estavam em casa. Ainda agora tinham chegado a uma casa nova e já se tinham ido embora. Entrou e ficámos amigos para o resto da tarde. Passávamos os dias à espera de irmos brincar para casa um do outro. Eu sempre preferi os brinquedos dele e gosto de acreditar que ele também preferia os meus. Quando os trocávamos (e eu finalmente podia levar os soldadinhos do Miguel para o campo de batalha na colcha amachucada da minha cama) já éramos amigos para o resto da vida.

Os nossos irmãos nasceram no mesmo ano. O dele, o Filipe, estava sentado ao lado dele. A minha ficou em casa. Nessa noite não pode reencontrar quem nunca perdeu.

TCHACK!

Do outro lado estava o Nuno. Vivia no prédio ao lado e só ficámos amigos mais tarde. Ainda assim tivemos tempo para fazer jogos de futebol até ao por do sol e bastante depois disso. O Nuno jogava muito bem e todos queriam ser da equipa dele. Para além disso nunca se zangava e tinha quase sempre razão. Só reparei que gaguejava quando alguém mo disse. Há cicatrizes que só existem porque os outros querem.

O irmão também lá estava com a sua namorada nova. O Joca veio da Escócia de propósito para o casório. E desta vez a namorada é Polaca. Já lhe tínhamos conhecido uma Inglesa e outra Russa ou Lituana.

VIRE-SE AGORA DE BARRIGA PARA BAIXO, ESTÁ BEM?

Na ponta estava o Pedro. Vivia no prédio da frente e sempre foi o mais conflituoso. Nunca gostou de perder nem que os outros tivessem razão. Era sempre bom tê-lo na nossa equipa, pois dava caneladas nos outros a corria até não poder mais. Foi dos primeiros a falar-me sobre política e a mostrar-me os fundamentos do comunismo, apesar de uma ano mais novo. Era óptimo quando o Pedro podia vir à rua, pois assim já dava para fazermos uma equipa e jogar com a outra rua. E também atirava pedras com mais força do que qualquer um de nós!

O Hugo estava sentado em frente ao irmão mais velho. Ele também se fez forte e foi embora. Rumou à Suíça e aproveitou as promoções da easyjets para vir ao casamento.

AGORA QUIETO, POR FAVOR

Bastante mais tarde chegou o Ruben com a namorada. O Ruben era o irmão da Sandra, a rapariga mais bonita da rua. Todos nos apaixonámos por ela e, cada um à sua maneira, acreditou que ela gostava era dele. Ficámos a saber que já tem 3 filhos e, apesar de recentemente divorciada, foi viver para Espanha.

TCHACK

O motivo do encontro, afinal, não foi o casório, mas a presença do Joca e do Hugo. Manos mais novos, fizeram-se fortes e foram-se embora. É raro vê-los e muito mais precioso encontrá-los juntos. É tão bom quando alguém trata de juntar os que raramente se juntam.

MUITO BEM, PODE ESPERAR LÁ FORA QUE EU JÁ O CHAMO.

Ao contrário da Anna Bertha, sempre que vejo a malta da R-X, vejo a minha infância.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty

Primeiro pensava que este tipo de pensamentos só me assaltavam a mim…

Depois percebi que não.

De seguida pensei que só me assaltariam da primeira vez… as primeiras vezes são sempre piores…

Pelos vistos também não.

“O coração apertou-se-me. Não muito leve. O céu estava limpo, a luz transparente e, contudo, tenaz, insistente, sentia desprender-se à minha volta um cheiro insípido, como se sob a sua película lustrosa todos estes instantes estivessem apodrecidos no coração: era o cheiro insípido da resignação.
Hélène soergueu-se.
— Achas absurdo termos filhos, não é?
Olhei-a surpreendido.
— Tens vontade de os ter?
— Sim e não. Pergunto-me se isso não enriquecerá esta vida.
Sorri.
— E não querias perder uma ocasião de enriquecer?
— Não te rias. O que é que tu achas, tu?
— Antigamente, achava insensato lançar alguém no mundo.
Isso não te assusta?
Ela hesitou.
— Não. Mesmo que um homem seja infeliz, poderemos realmente dizer que seria melhor ele não ter existido?
— De facto — disse eu. — Mas se esse homem espalhar o mal à sua volta?
— E se espalhar o bem?
— Oh, tens razão! Fazer nascer uma criança, impedi-la de nascer... é igualmente absurdo. É indiferente.
— Mas quando se deseja uma coisa já não é indiferente. Então já não é absurdo fazê-la, pois não?
— Talvez o meu erro seja não saber ainda desejar nada.
Ela riu-se:
— O teu erro? Não acredito que tenhas assim tantos erros!
Eu ia remando e o barco deslizava sem deixar rasto, muito calmo. Não ser nada senão esta espuma branca que sobe e se perde na toalha igual da água. Era preciso matar esta voz. A voz dizia: eu queria ser esta espuma. E ela disse: era preciso matar esta voz. A espuma nascia e morria sem voz.
Do alto de uma prancha de mergulho, um corpo moreno saltou para o rio; pares enamorados caminhavam pela margem com passos miúdos. Um domingo de paz. As horas fugiam-nos por entre os dedos. Longe dali, havia horas que se depositavam no solo, misturadas ao ferro fundido e ao aço. Todos os dias saíam das fábricas alemãs novos canhões, novos tanques."
Simone de Beauvoir, “O Sangue dos Outros”, Colecção Mil Folhas, nº 38, Público, 2003.

A segunda vez ainda está a ser pior que a primeira.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

PROCISSÃO

Graças a Deus que proibiram os foguetes! Acho que até nutro alguma simpatia pelos incendiários e pirómanos quando penso nisso. Não fora eles e a tragédia que causam todos os verões, ainda hoje teríamos de suportar as intermináveis alvoradas de pólvora feitas, precisamente às 8 da manhã.

O pesadelo começa com o silvo característico da pólvora em ignição, bem apertadinha num cartucho de cartão prensado. É o momento em que abrimos abruptamente os olhos e olhamos aflitos para o tecto branco ou não. Antes mesmo de sentirmos o sabor a pauta de música na boca, já o estrondo ecoa no ar, imitando o metralhar de uma metralhadora engasgada. Aqui iniciamos o processo da tomada de consciência: estamos na aldeia, em casa da avó ou da tia ou do primo ou sei lá quem do amigo que nos convidou, e é o dia da festa. Para ajudar à festa (a outra, a metafórica e não a da aldeia), os cães assustados que trocaram a liberdade por uns restos de comida (ou são escravizados pela espécie superior que suportam o seu cheiro e barulho em troca de alguma protecção para as cada vez mais inúteis capoeiras) começam a latir desalmadamente. As crianças também iniciam a berraria. Bastam alguns segundos para que o contágio seja total e todas as crianças das redondezas, dos 0 aos 6 anos, chorem almadamente uma vez que já a têm (a alma).

Seguem-se mais silvos seguidos da metralha. A partir de certa altura começamos a rezar para que, no meio do latido-choro-berro-metralha, consigamos escutar a falta do silvo. Sem silvo não há foguetes. Ás vezes parece que não vai haver mais nenhum foguete… deixámos de ouvir o silvo… mas entretanto lá aparece ele… que merda! Deve ter sido o fogueteiro que precisou de dar uma passa na beata para lhe avivar a ponta. Provavelmente já perdeu uma das mãos num foguete mal aparelhado. A dinamite saltou para fora do papelão atado com corda de sapateiro e roubou-lha. Às vezes também rouba um olho ou três dedos.

Bem feita!

Tudo acaba com os morteiros, uma espécie de foguetes iguais aos outros só que, em vez de se desmultiplicar em pequenas explosões, produzem uma única, forte e intensa, que perdura durante mais tempo nos tímpanos e ecoa se a aldeia tiver a companhia da serra. Tal e qual um peido.

Sem comer chegamos ao café. Os da terra bebem martinis, favaios ou brancos traçados. Nós, os lisboetas, engolimos com dificuldade a bica queimada.

É engraçado assistir à procissão.

Antes podemos participar na missa. Podemos porque realmente é assim. Os homens têm essa permissão. Podem ficar à porta da igreja, a conversar sobre a bola, os campos ou os outros. Uns fumam. Todos vão à vez ao café beber martinis, favaios ou brancos traçados. À hora da missa já há que arrisque uma mini. Dentro de portas estão todas as mulheres que não têm de ficar em casa a preparar o almoço e os homens a quem a vida castigou de maneira cruel. As crianças, mordomas e irmandade também lá estão, orgulhosas dos seus vestidos novos as primeiras e amaldiçoando as bebidas d’ontem os últimos. Os emigrantes, sejam eles da Suíça ou de Lisboa, estão lá todos. Já me esquecia do Padre e da Filarmónica.

Quando termina a consagração, inicia-se a procissão. À frente vai a irmandade que é responsável pela cruz e pelas velas. Antes do padre, ainda há tempo para as ofrendas ou cabaças que não passam de tabuleiros de comida e bebida oferecidas pelas mordomas para leiloar em favor da festa. Estas têm o privilégio de escolher quem carrega as ofrendas e os andores, já que cada uma foi responsável por enfeitar um dos santos que habita a igreja e que, na procissão, competem entre si em beleza e fartura de comida. Elas escolhem aqueles que os irão carregar pelas ruelas da aldeia enquanto acompanham, bem vestidas e penteadas, o fruto do seu labor nas semanas que antecederam o dia da festa. Depois novamente a irmandade que leva mais velas e figuras religiosas e depois é o padre e o presidente da junta, casa do povo ou associação de beneficência da aldeia. Estes têm direito a protecção suplementar, sob a forma de um palio erguido por 4 ou 6 voluntários que honrosamente se desculpam pela inexperiência, cadência, falta de jeito e tropeções que vão infligindo uns aos outros. A filarmónica, que entoa tristes músicas de marcha lenta com os seus reluzentes instrumentos e pautas brancas seguras com molas de roupa, segue em passo certo anunciando a procissão que termina.
No final vai o povo.

Não é aqui que entramos nós, os lisboetas. Nós entramos antes. Se não temos cuidado somos imediatamente intimados a desempenhar tão inusitada mas decisiva tarefa, fruto da desistência de algum previamente eleito que se baldou à última da hora. As bebedeiras têm destas coisas: fazem com que alguns não oiçam os foguetes e ignorem os irados despertadores das mães, avós ou tias que se cansam de os tentar abandonar o processo de destilação.

Somos depois fotografados por máquinas de filmar modernas e convidados a beber um martini, favaios ou branquinho traçado no café da aldeia, enquanto as pétalas, lançadas pelas viúvas que enfeitaram as varandas com colchas de linho tricotadas à mão, nos vão caindo dos cabelos empastados de gel.

Ainda sem comer, bebemos porque hoje é dia de festa!

terça-feira, 18 de setembro de 2007

A PRINCESA DO ALVA

Sentada nas margens do rio que um dia irá herdar, molha os pés com medo de pisar algum girino acabado de nascer. Apesar de muito abundantes no final do verão, são difíceis de encontrar. Normalmente vêm das ribeiras que se desfazem no leito limpo mas escuro por causa do fino húmus que se desfaz nos seus muitos buracos, casa das cabras cegas, trutas, enguias e cobras d’água. Gostam de se esconder por entre os seixos pretos, roliços e espalmados. Quando começam a ter patas, adora vê-los indecisos sobre o seu papel na natureza, também ela híbrida. Ora saltam, ora nadam, sem saberem lá muito bem o que fazer com tão estranhos apêndices.

É uma princesa branca e bela, como o são todas.

No Inverno fecha-se em casa, com medo do nevoeiro que sobe do rio. Principalmente de noite. O dia, quando vem despido e sem lágrimas, é aproveitado para namoriscar as videiras, o milho, os pinheiros e os castanheiros que fazem companhia às oliveiras. De vez em quando também visita as couves, os nabos e as batatas. Quando lhe apetece vai buscar umas cavacas só pelo prazer de as atirar à lareira.

É uma princesa branca e muito bela. Tem uma pele sedosa como teriam as flores se tivessem pele.

Vou visitar a princesa do alva menos vezes do que gostaria. Talvez umas três vezes por ano, não mais. Quando era pequeno ficava na sua companhia durante os três meses de Verão. Adorava ouvir as suas histórias. De quando em vez contava-me um ou outro dos segredos do campo. Nunca falava dos mistérios do rio. E esses eram imensos.

É uma princesa amada pelo seu povo, como o são quase todas.

Fez há pouco tempo 84 anos e o seu nome é Esperança.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Armia Zbawienia

Pouco passava das 10:30 da manhã quando, marchando em falanges imponentes, num brado deslumbrante, foram em socorro do Exército de Salvação sedeado em Varsóvia, quais aliados que entram num campo de batalha de uma cidade destruída pela guerra.

Varsóvia foi praticamente toda destruída pela IIª Guerra Mundial, fruto da decisão de Hitler em aniquilar o símbolo da resistência à ocupação germânica. A 1 de Agosto de 1944 a resistência polaca decide passar à luta armada e revolta-se. É a então denominada “Insurgência”, na qual mais de 18 mil resistentes organizados em verdadeiros corpos de exército, bem como cerca de 180 mil civis, são mortos após 2 meses de intensos combates na capital da ocupada polónia, com o exército vermelho a assistir nas margens do rio Vístula.

Com a capitulação dos insurgentes, capitula também a Polónia. Foi depois ocupada pelos soviéticos até à queda do muro de Berlim de 1989. Bem antes da entrada dos exércitos comandados por Estaline, Hitler teve tempo de se vingar, ordenando que não ficasse pedra sobre pedra na cidade ferida pelos constantes bombardeamentos aquando da revolta. Foi um plano executado á letra pelas SS que demoliu sistematicamente todas as principais artérias, bairros e edifícios, deportando habitantes e perseguindo colaboradores. Varsóvia ficou reduzida a 10% do que era antes do início da Guerra.

Assim sendo, não é de estranhar que toda a cidade seja um monumento aos resistentes (ou aos insurgentes). Andando pelos bairros da cidade, sejam eles quais forem, é impossível não deparar com placas, de bronze enegrecido, em edifícios de estilo comunista comemorando a morte de um ou vários heróis que pereceram estoicamente às mãos de um exército ocupante. Algumas são adornadas com fitas vermelhas e brancas, flores da época e velas meio derretidas. Os edifícios que sobreviveram ostentam, orgulhosos, os tijolos vermelhos com marcas de balas e as inevitáveis placas.

De vez em quando encontramos uma praça onde estátuas de ferro negro representam a luta, com homens e mulheres de uniforme alemão, carregando ora os filhos ora as armas, a entrarem em esgotos, a saltarem ruínas, a dispararem para inimigos imaginários. Uma vez mais as fitas bicolores e as velas semiapagadas tornam o cenário um pouco mais assustador do que já era. Os Polacos levam aquilo a sério.



Sem querer entramos no gueto. Aqui os alemães prenderam todos os judeus de Varsóvia até os conseguirem deportar para os vários campos de extermínio. Há museus ao ar livre que mais não são do que restos de arame farpado, muros esburacados e casamatas destruídas por toda a parte.

Os reforços chegaram num dia de chuva. Para lá chegarem ouviram rumores de que o distrito de Praga Północ, bem perto do Jardim Zoológico, era um dos mais problemáticos da cidade. Segundo lhes diziam os habitantes de Cracóvia e de Zakopane, havia um assassínio por dia, acompanhado por vários assaltos à mão armada. Sem se intimidarem, marcharam orgulhosamente até se juntarem ao Armia Zbawienia.







Constituído por apenas 3 membros, fundaram a sua Igreja Evangélica há apenas 1 ano. Ocupam os seus dias jogando futebol, rezando e idealizando brincadeiras com jovens e crianças do mais desfavorecido dos bairros de Varsóvia.



É uma batalha que ainda está longe da capitulação.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Chata pod Rysmi

À distância de meia hora da fronteira polaca (sim, porque em montanha as distâncias medem-se em tempo) e situada a 2250m de altitude, encontra-se o abrigo de montanha / pensão Chata pod Rysmi.



A fronteira é a do sul.



O território é o dos Altos Tatras, espécie de Alpes Polacos e eslovacos, parque natural de qualidade invejável. Não só pelo cuidado nele posto como pela própria natureza. Ainda lá vivem Ursos em estado selvagem, que namoram com águias reais e cabras montesas em alturas de menor frio. Com a neve chegam os esquiadores e os Ursos escondem-se nas grutas para dormir, fingindo hibernar para não serem chateados.

Embora situado em território Eslovaco, não se pode dizer que este abrigo tenha uma nacionalidade definida. Para além de podermos trocar vários tipos de notas e moedas (Euros, zlotis e coroas, pelo menos) por impagáveis cervejas de meio litro (pivos) e reconfortantes cafés (nada de expressos! Ou turco ou instantâneo!), por lá sente-se uma espécie de fraternidade internacional.

Enquanto recobrávamos da esgotante subida ao ponto mais alto a Polónia (Monte Rysy, 2499m de altitude, sempre defendidos pela chuva, guardados pelo frio e camuflados de nevoeiro – diariamente a partir das 11:00 e até às 17:00), sentados em mesas de forte madeira e bancos corridos e tentando não nos engasgarmos com uma refeição quente ao fim de 8 horas de inclinações
que obrigam à utilização de correntes para a conquista do bicho, somos presenteados com escaladores e hikers oriundos da Suécia, Inglaterra, Checos e, claro está, Eslovacos e Polacos. Também lá estavam uns quantos alpinistas que treinavam para uma subida a um cume qualquer de nome nepalês, mas não consegui perceber a nacionalidade. Também há desvantagens em falarmos a língua de Shakespeare com sotaques macarrónicos. Pelo menos se nos sentamos a duas mesas de distância. Mesmo que estas sejam corridas.



Não há electricidade nem água potável. A noite é conquistada por esquecidos candeeiros a petróleo e lanternas frontais. A água está á disposição em duas tinas de alumínio, logo à entrada. Cada um serve-se numa caneca e leva-a lá para fora para o que tiver de fazer. Eu lavei muitas vezes as mãos e uma vez os dentes. Também não há caixotes do lixo. O que cada um faz, deve levá-lo de volta.

Ainda assim, aquilo que mais chama a atenção nesta desolada região de montanha, onde o cinzento das pedras rejeita o azul do céu e o branco das nuvens se dilui nos restos de gelo que o sol não consegue beber, são as casas de banho. Em tão espartanas condições, seria natural que aquelas também o fossem. Puro engano. A cerca de 100 metros da Casa Abrigo, percorrendo o trilho de cerca de hora e meia em direcção à primeira povoação eslovaca, encontramos umas latrinas profusamente decoradas. Pintura em tons quentes, obra de arte com influências dos movimentos de libertação da década de 60, facilmente reconhecemos os símbolos da paz, do prazer e do sexo livre. A cerca de 10 metros da dita impõe-se um símbolo fálico em madeira esculpido e impecavelmente ornamentado, convidando os mais aflitos a uma breve antevisão do alívio prometido e os mais curiosos a poses para fotografias digitais. Para quem tem mais tempo, estão disponíveis dois bancos de jardim. Isto porque a casas de banho são só para um. Os outros que esperem.

A espera só custa porque o que se vê lá de dentro é de outro mundo. Toda a frente do pequeno cubículo de madeira é de vidro feita. Uma enorme janela de vidro duplo para um vale encantado. Uma sanita rústica que dá para um buraco. Um buraco que dá para o mesmo vale. Sente-se um ventinho agradável no rabo e um prazer enorme na vista. Fiquei lá muito mais tempo do que precisava. E do que devia também, pois o grande pénis já tinha perdido o carácter de novidade e os bancos de jardim teimavam em ser poucos para tanta afluência. Não quis saber e voltei a fazer mais um pouco de esforço para justificar o meu egoísmo em tão imprevisível lugar.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Oświęcim

Pequena cidade a cerca de 65 Km a Oeste de Cracóvia, pouco tem de interessante para além da estação de comboio. Faz lembrar uma daquelas cidades americanas escondidas no deserto do Texas, com algumas casas de dois andares que cresceram à espreita da única estrada alcatroada que atravessa a região. Neste caso a estrada é composta de duas linhas de ferro, em vez do alcatrão derretido pelo sol.



Em 1940 Oświęcim foi objecto de estudos geológicos. Os alemães recém entrados na Polónia analisaram a capacidade de drenagem das vastas planícies que sustentavam o cultivo de cereais. A grande capacidade de drenagem aliada ao facto de o terreno ser plano agradava-lhes. Principalmente porque nesta pequena localidade se situava um nó ferroviário de alguma importância. Central e com grande capacidade de movimentação de transportes, tanto de comboios como de carros, era o local ideal para a localização de um novo pólo industrial. Esse pólo foi desenvolvido o quanto antes. Lá se instalaram fábricas de borracha sintética e de combustível, como a Buna-Werke, bem como, com o decorrer da segunda guerra mundial, toda uma série de fábricas relacionadas com o esforço de guerra alemão.



Provavelmente nunca ninguém ouviria falar de Oświęcim não fora o facto de lá se ter instalado a maior de todas as fábricas, ela sim imprescindível ao sucesso de todas as outras…







… e se muito poucos escutaram este nome foi porque os alemães o mudaram logo após a ocupação. Oświęcim passou a figurar nos mapas de geografia como Auschwitz.



A entrada é gratuita (como só o poderia ser) e é visitado cerca de 250.000 pessoas anualmente: Americanos que contemplam a arquitectura e as madeiras dos telhados que resguardam as casernas abandonadas pelo exército polaco ainda antes da eclosão da guerra,





grupos de jovens em excursões escolares, famílias que aproveitam o dia para saírem de casa, peregrinações de judeus que ostentam a bandeira de Israel e rezam baixinho cânticos que ensurdecem as nossas almas. Cá fora há amplos jardins que convidam a um pique-nique e vários parques de estacionamento para autocarros autopluma com ar condicionado.



Por 2 zlotis e meio compramos o guia do museu património da humanidade e pela mesma quantia assistimos ao filme de 30 minutos que faz o necessário enquadramento. Ao todo gastamos 1 euro e meio (se não contarmos com o zloti e meio que gastamos nas imaculadas casas de banho guardadas por circunspectas, mas nem por isso antipáticas, senhoras de semblante carregado). Há minibuses que nos levam, também gratuitamente, em silêncio durante 3 km até Birkenau. Também nos trazem de volta. Ainda bem.





Nós não gastámos os 210 zlotis da visita guiada. Ainda mal…

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

1 de Agosto

É amanha dia 1º de Agosto
E tudo em mim é um fogo posto
Sacola ás costas, cantante na mão
Enterro os pés no calor do chão
É tanto o sol pelo caminho
Que vendo um, não me sinto sozinho
Todos os anos, em praias diferentes
Se buscam corpos sedosos e quentes

Adoro ver a praia dourada
O estranho brilho da areia molhada
Mergulho verde nas ondas do mar
Procuro o fundo p’ra lhe tocar
Estendido ao sol, sem nada dizer
Sorriso aberto de puro prazer


Desde a puberdade que temos a infantil tradição de ligar um ao outro a cantar esta canção dos Xutos. Ora sou eu que ligo, ora é o João. Por vezes um esquece-se, mas o outro lembra-se sempre. Desta vez tenho a certeza de que o João se vai esquecer, fruto da nova categoria social que adquiriu à cerca de um mês.

Desde então, o 1º de Agosto é para mim um dia diferente… especial. Para além de marcar o verdadeiro início das férias, transporta-me para os abafadinhos perto da escola secundária e para os melos atrás do pavilhão, para os cadernos enrolados no bolso de trás das calças e para as botas da tropa e t-shirt manchada de lixívia no pico do verão.

Mas este ano o 1º de Agosto também é diferente e especial por outro motivo. O escutismo faz 100 anos.

Nem sempre bem utilizado, nem sempre bem aplicado, provavelmente com razões obscuras na sua nascença… o facto é que se impôs e praticamente não conseguimos imaginar o nosso mundo sem ele. Parece que sempre existiu alguma espécie de organização juvenil com ideais engraçados e que serviu para modelar alguns dos mais duros e íntegros seres humanos que conhecemos. “Claro que Vasco da Gama foi escuteiro!” responderá qualquer Explorador enquanto suja as mãos na vã tentativa de fazer um nó de escota.

O que é certo é que hoje faz 100 anos que o General Inglês Robert Stephenson Smith Baden Powell foi acampar com vinte de rapazes para a ilha de Brownsea, fundeada no Canal da mancha.



Daqui a nada, perto das 8 da manhã, não estranhe se um estranho estranhamente se levantar e começar a gritar bem alto umas frases esquisitas. Provavelmente é um escuteiro a fazer a renovação da sua promessa, em conjunto com cerca de 28 milhões de escuteiros por este mundo fora.

Eu, como sou diferente, vou ficar a dormir que dia 2 vou para a Polónia, comemorar, à minha maneira, o dia 1 de Agosto.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Jogging

Quando a chuva abandona os céus, assustada pelos gritos de calor que a terra lhe lança ao inclinar perigosamente a sua cabeça em direcção ao Sol e deixando propositadamente os pés ao frio, como que para compensar o conforto de uns com o desconforto de outros, a nossa cidade muda de cor. De cor e não só. Também muda de atitude.

Eu, pelo menos, mudo.

Exemplo disso é a minha sádica vontade de calçar uns ténis, vestir uma T-shirt cinzenta e copiar os políticos modernos correndo pela manhã ou ao final da tarde enquanto o comum dos mortais me observa, no meio de uns quantos seguranças de óculos escuros e coisas esquisitas nas orelhas.

Obviamente não sou seguido pelos senhores musculados e de semblante carregado, com os penteados imaculadamente imaculados por um miraculoso gel, nem tão pouco sou capaz de correr logo pela manhã.

No entanto sou observado pelo comum dos mortais.

Ao chegar cruzo-me com os clientes de um Clube de Ténis, Ginásio, Squash , Body Combat e coisas afins, que saem dos seus carros de gama alta, enfeitados por permanentes fingidamente descuidadas (elas) e fatos propositadamente desengravatados minutos antes de entrarem em Clube de gente fina (eles). O olhar que me lançam não é propriamente piedoso. Antes um misto de reprovação e incompreensão.

Já em plena libertação de toxinas, cruzo-me com os caninos que aproveitam o final da tarde para passear os donos. Estes são mais perigosos. Nem sempre acondicionam os seus melhores amigos com as respectivas trelas e é normal que me observem com apreensão: “Se o raça do cão lhe dá uma dentada, estou em sarilhos!”, pelo que me olham quase sempre com medo. Pelo canto do olho, enquanto o outro canto segue os fiéis amigos.

Passo sempre por vários casais de namorados, sentados em bancos de madeira cuidada, quase sempre à sombra de olhares indiscretos. Mestres em visão periférica e com a adrenalina perto do limite, transformam os sinais de sexo explícito em implícito. Não resisto em reatar um atacador supostamente mal apertado na proximidade dos mais afoitos. O que é bom deve ser sofrido, certo?

Há um parque infantil no fundo do jardim, onde as energias normalmente já não são muitas e o esforço tem de ser bem doseado (é o início de uma subida lixada). Os risos das crianças, os pais cansados ou os avós babados observam-me de acordo com a curiosidade da respectiva idade. E com alguma compreensão, também. Á excepção dos primeiros todos estamos a fazer um frete. Pelo menos passados alguns minutos.

Também há os sem-abrigo. Esses mal olham para mim. Se não estivesse a correr, talvez me pedissem um cigarro ou umas moedas. Assim limitam-se a enrolar mais um Detroit ou a beber mais um gole de vinho para acompanhar a carcaça com manteiga, escondida no saco de plástico velho que faz barulho para esconder a solidão.

Claro que passo por compichas. Aqueles que, como eu, não conseguem resistir ao sádico apelo da translação terrestre. Há-os de todas as idades, raças e géneros. Há o indiano que corre sempre em calças de fato de treino, cantando os mesmos sons regurgitados pelos headphones da loja do pai que um dia irá ser sua; há o casal que não corre, apenas marcha seguindo a prescrição do médico dos pulmões ou do coração, apesar dos cerca de 40 anos que aparentam 50 que ainda não têm; há o velho gordo que mostra sempre um pouco do umbigo e encharcaria t-shirt mesmo se não corresse. Todos nos olhamos com simpatia, aproveitando para contar as voltas que cada um dos outros dá ao circuito. Depois há o “Pró”. Sempre com roupas a condizer, nunca sua e pára em todas as estações do circuito de manutenção para realizar os exercícios mais difíceis (os de cor castanha segundo o manual de instruções prontamente colocado antes de cada aparelho). Pelo menos quando alguém passa por ele.

Mas dos que eu mais gosto são os Ucranianos, Bielorussos e Romenos que costumam fazer-me companhia ao Domingo. Juntam-se no parque de merendas e enchem as mesas de garrafas de vodka de marcas esquisitas ou latas de cerveja do LIDL e comidas com molhos e cheiros desconhecidos. Dançam ao som dos carros mal estacionados de vidros abertos e portas escancaradas que teimam em reproduzir música pimba da terra deles. Outras vezes conversam sobre projectos de casas a construir nas mesmas terras, assentes em euros que custam a ganhar. Matam saudades, matam a fome, matam a sede. Matam porque não estão mortos.

Ao passar por eles sou agraciado com urros e palmas dos menos sóbrios. Homens e mulheres de cabelos louros aplaudem-me com sorrisos marcados por dentes de ouro, ao mesmo tempo que sou ultrapassado pelo reformado que faz do Parque José Gomes Ferreira mais do que um conjunto de árvores antes de chegar à Rotunda do Relógio.

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Quinta Tribuna

Tudo começou em Outubro, quando o Bártolo me telefonou, uma tarde. Era uma tarde como as outras. Estava num intervalo entre formações e escutei a sua sempre agradável voz. Contou-me que ia para a América. Tinha ganho uma bolsa de pós doutoramento e não conseguiria assegurar as aulas que, desde há 8 anos, leccionava no IADE. Perguntou-me se estava interessado. Eu disse que sim.

O Bártolo é uma referência dos tempos da faculdade. Tertúlias. Copos. Viagens e férias juntos. Boleias. Kierkegaard.

Sem nos vermos, telefona-me. Quer saber como estou.

Eu também lhe telefono. Mas menos…

Também tem o cabelo encarapinhado e usa patilhas. Também gosta de música alternativa e de cinema. Também foi para Filosofia porque quis. É um devorador de livros e de amizades. Eu tento.

Fui professor no IADE, da cadeira de Filosofia da Arte e do Design, desde Novembro até hoje.

Pode ser que continue nos domínios da retórica e da sofística, falando de livros e de senhores mortos, de valores e de consumismo, de cultura e de arte, de cyborgs e de implantes.

A pica, a pica do outro mundo, essa já ninguém ma tira!

Obrigado Zé.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Mostra Gastronómica

Estávamos para ir à terra há uns meses. Os feriados não abundavam e, quando apareciam, já tínhamos que fazer.

A vida é assim. Queixamo-nos, mas o arrependimento não se acalma com as lamúrias.

Desta vez é que era. Vinha um feriado aí na nossa direcção e eu não tinha formação no Sábado. Adiei um curso para a segunda seguinte e estava tudo decidido!

Dia 7 lá arrancámos e partimos em direcção ao campo. As viagens para a terra fazem-me sempre sentir novamente um puto de 4 ou 5 anos. Imagino os meus amigos da terra, os quintais que defendia dos inimigos, os campos de milho transformados em savanas impenetráveis, a ribeira onde caçava girinos com 2 pernas.

Parámos na sede do Concelho para comprar mantimentos. Sim, porque na terra já há um LIDL! E foi com surpresa que vimos os anúncios a uma segunda feira gastronómica que iria ocorrer no local, precisamente no fim de semana em causa.


Apesar da minha insistência em realizar a viagem do rejuvenescimento umas 3 a 4 vezes ao ano, nunca tinha ouvido falar em tal coisa… mas o que me mais espantou não foi o ser o segundo evento desta espécie! O que mais me espantou é que um Concelho desertificado, com a pior rede viária do País, praticamente sem Indústrias (honra seja feita à Carriça), com uma população envelhecida, sem médicos e com um dos mais altos índices e percentagens de área ardida do País, aposte em eventos destes!!

Creio que o meu espanto também nada tem de original.

Muitos houve que se espantaram com o Mosteiro dos Jerónimos quando o povo morria à fome. Outros criticaram a edificação do Convento de Mafra em alturas de miséria.

Mas mostras gastronómicas? Festa das tasquinhas? Feiras de artesanato?

Como sendo o ponto alto do programa político de uma Câmara ou de uma região?

Eu continuo sem perceber o que é que esta classe política pensa do País, da sociedade ou do mundo, embora desconfie que a culpa é dos meus olhos e não da vista deles.

Eu lá fui jantar à Junta de Freguesia do Piódão, comer um bom Bacalhau à Lagareiro ensopado em broa de milho caseira, beber um vinho do Dão e uma bela aguardente de mel. Só isso me fez aguentar a Banda Filarmónica do Barril e o Rancho Folclórico de Celavisa.

O País pode estar a arder, mas se lhe derem circo…

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Adolfo Vieira de Brito

Nunca tinha ouvido falar em tal personagem e, de repente, invadiu a minha vida como só os desejos e os medos o conseguem.

Tudo começou há uns meses. Veio de surdina. Aos poucos… como não querendo dar nas vistas.

Primeiro em conversas de intervalo, escondido pelo zapping sôfrego de quem quer passar anúncios mais depressa, a fim de chegar finalmente á segunda parte das séries que passam na 2:.

Depois foi envolto em noticiários e informações de trânsito, nas raras vezes que nos sentamos os dois (ou os três) no mesmo carro e ao mesmo tempo.

Finalmente foi ao jantar. E aí já não pude fugir! Estava encurralado!

Em Março enchi-me de coragem e deixei-me convencer a visitá-lo. Fui mais a M. e não desgostei de todo, embora a sensação desagradável não tenha, nem por sombras, desaparecido.

A semana passada fui lá sozinho…

Depois de preencher não sei quantos papéis, ter repetido vezes sem conta os números de SS, BI e NIF de todos os que vivem cá em casa, fui confrontado, inevitavelmente, com a mais reveladora de todas as decisões: Quem pode vir levantá-la para além dos progenitores?

Triste, cabisbaixo, vencido, escrevi o nome da minha mãe, da minha irmã e da minha sogra.

A partir de Setembro Adolfo Vieira de Brito fará parte das conversas de todos os dias…

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Sexualidade Feminina

Assim se chama o blog da Isabel.

Com este já lá vão 3 colegas, amigos ou grandes conhecidos que ficaram mais próximos da imortalidade.

Soube, também, entretanto, que o Luís Trindade já escreveu 1. Mas não vejo o Luís há muito tempo, embora passássemos grande parte da infância juntos, e partilhássemos algumas férias regadas de cervejas casuais em Côja e em Coimbra. Por isso não quero contar com esse.

Sinto um misto de orgulho e impotência. Orgulho por eles também me pertencerem, impotência por não saber se também lhes pertenço (e nada poder fazer para tal).

Foi um lançamento muito bonito e interessante. Não do disco. Do livro. Encontrei o Jaleco, a Dina e de repente voltámos uns anos atrás. Voltaram as bocas, as piadas fatelas e os gritos pela Académica de Coimbra (ao que parece não desceu de divisão). Isto ao mesmo tempo que um repórter tentava gravar a sua peça para a câmara da RTP, falhando consecutivamente várias tentativas. Coitado…

A Isabel estava lindíssima, tal como o resto da sua família.

Fomos beber uma imperial, a correr porque os tempos já não são os da faculdade, e acabámos por beber duas. Isto enquanto a Isabel continuava a assinar livros nas mãos de psicólogos, sexólogos, jornalistas e outros que tais. Mas também, Isabel, nem tudo podem ser rosas. Nós brindámos à tua!

Para quem quiser, aqui deixo meu último motivo de orgulho.


Parabéns Isabel!

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Segundo Primeiro de Maio

Tinha 2 anos e os meses deste Blog quando, às cavalitas do meu pai, vislumbrei pela primeira vez um mar de pessoas. Elas tinham muitas bandeiras encarnadas. Gritavam todas em conjunto, havia música e estava muito calor. Lembro-me ainda da minha mãe estar muito assustada e de se querer ir embora. Não sei exactamente onde é que estava, mas era em Lisboa e havia arcadas onde o meu pai ia de vez em quando fugir aos encontrões com a desculpa de apanhar um pouco de sombra.


É das minhas primeiras recordações.

A semana passada voltei a escutar as mesmas palavras de ordem. Também havia música e bandeiras vermelhas. Cheguei mesmo a trazer uma para casa, quem sabe com saudades das que não pude trazer à 33 anos atrás. O que não havia era calor. Estava frio e choveu o suficiente para voltarmos para casa a correr.

Este ano resolvemos contrariar os convites para um dia de praia, almoços em família ou inauguração de um campo de Paintball e decidimos participar nas comemorações do 1º de Maio. Calças de ganga coçadas, camisa aos quadrados e botas marcadas por anos de maus tratos, lá fomos nós para a cidade universitária ao som dos pífaros da CGTP.

A L. adora ir no seu carrinho, praticante de TT nos passeios de Lisboa, empurrada ora por mim ora pela mãe. Nesse dia dizia adeus às pessoas, cantava e ria como raramente o faz na presença de estranhos. Quando nos sentámos na relva ainda seca da cidade universitária, perguntou se estávamos num pic-nic? A A. (que, como nasceu na Bulgária, tem uma visão menos romântica destas coisas) disse-lhe que sim, enquanto eu e o PT convencíamos os camaradas do Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa a dispensar-nos umas fatias de pão para a morcela que acabáramos de comprar. Comemos sardinhas e bebemos vinho carrascão. Acabámos com as últimas bifanas e bebemos mais vinho.

Quando começou a chover resolvemos visitar o outro 1º de Maio. O dos ciganos que ocupam os parques de estacionamento que nos outros dias estão reservados para os doutores e futuros Dr.’s. Vendem roupas de qualidade, lençóis de marca e sapatos avulso. De vez em quando aparece um índio do Peru que vende cachimbos, calças e pulseiras para disfarçar as saudades das folhas da coca.

Sem comprar nada, não admirou que a chuva continuasse cada vez mais forte, cuspida pelo vento. Não havia alternativa. Marchemos para casa que de 1º de Maio já chega. Foi então que aconteceu…começaram as palavras de ordem

“Sócrates, escuta: Os trabalhadores estão em luta!”.

Começámos inevitavelmente por rir. Não só Sócrates não escutava como o relvado em frente ao jardim estava mais despido do que num Sábado de manhã, quando meia dúzia de menos jovens se juntam para jogar à bola fingindo que a polícia municipal não os vê.

Mas as piadas revolucionárias foram fraquejando à medida que iam chegando os tais. Aqueles. Vocês sabem! Vinham de todo o lado, em filas ordeiras, bandeiras vermelhas e palavras de ordem. Também havia música, bombos e cabeçudos. Marchavam na nossa direcção, indiferentes à chuva, ao vento e às nossas cada vez mais silenciosas piadas. Eram tantos que me lembrei subitamente do meu primeiro Primeiro de Maio, há 33 anos atrás. Parece que nunca mais acabavam… enfermeiros, professores, cantoneiros, agricultores, pescadores, mineiros, metalúrgicos…


Foi o meu segundo Primeiro de Maio.

Será que, com apenas 3 dias depois dos 3 anos, a L. se irá lembrar do pic-nic?

domingo, 29 de abril de 2007

Cinco !

Subitamente a nossa vida dá uma volta!

Minto. Não é assim tão subitamente.

A nossa espécie está programada para uma adaptação gradual às alterações estruturais. Mesmo quando são imprevistas. O Nuno Ferro (que saudades) chamava a este fenómeno de “familiaridade”. O que acontece é que, sem percebermos lá muito bem como, a nossa compreensão do mundo necessita de enquadrar todas as novas informações no quadro familiar pré-existente. É uma espécie de movimento globalizante da nossa consciência, que não gosta de deixar nada de fora, não gosta de não perceber o que quer que seja, detesta interrupções ou descontinuidades.

O melhor exemplo do movimento da familiaridade é a “surpresa”. Quando um dos nossos colegas de trabalho nos informa que se divorciou, ou quando encontramos uma osga dentro do nosso carro (mesmo no meio dos papéis que há anos jazem no lugar do morto), a nossa consciência petrifica! A mente reage instintivamente (logo in-cosncientemente), ordenando ao nosso corpo que fique alerta, enviando adrenalina para os músculos, eriçando pelos, etc. Mas bastam uns instantes para a familiaridade voltar a dominar o nosso estado. Trata-se de tentar enquadrar o momento da surpresa no contexto da vida. Da nossa vida. Assim, racionalizamos sobre os antecedentes do nosso colega (ele bebia muito, era um mulherengo, chegava sempre tarde, gastava o dinheiro todo…) e enquadramos a osga num leque de possibilidades racionais para a sua presença em tão inesperado local (foi da última vez que tive no campo, realmente deixei esta porta aberta muito tempo, escondeu-se nos papéis, etc.)

Sim, entrámos no domínio da fenomenologia.

Se atentarmos para momentos de grande alteração da nossa vida, verificamos que acabamos por os contextualizar do mesmo modo. Damos-lhe sentido. Encaixamo-los.

Assim foi o nascimento da L. A nossa consciência tem tempo de a enquadrar na rotina, explica-se a si mesma… convence-se. Mesmo depois do nascimento, há uma espécie de naturalidade e de familiaridade no primeiro colo, na primeira fralda, no primeiro acordar a meio da noite. Talvez também tenha algo de instintivo, não sei.

Deste modo, posso dizer que é com alguma naturalidade que ela chegou hoje aos 3 anos.

Volto a mentir! Trata-se antes de um misto de “familiaridade” com “surpresa”.

Quanto mais não seja porque sempre que lhe pergunto quantos anos ela vai fazer, a invariável resposta surge sem demora:

“Cinco!”

terça-feira, 17 de abril de 2007

IRS

Se há coisa que detesto é a burocracia.

Papéis, assinaturas, carimbos e formulários nunca se deram comigo, nem eu com eles. Talvez seja por isso que tenho de me organizar compulsivamente (pelo menos uma vez de três em três meses). Por isso e para conseguir distinguir a cor do tampo da mesa do meu escritório.

Esta semana teve de ser. Arrastei até à última, mas lá me encaminhei para o meio dos meus queridos e desordenados papéis, emaranhados com restos de envelopes de publicidade, contas de telefone, gás e água, facturas de gasolina, papéis de recados, apontamentos de telefone esquecidos em “pos-it’s” que já não colam, breves reflexões em folhas de rascunho, listas de compras para o “continente on-line”.

Em busca das declarações do banco, seguros e facturas da farmácia. Bom título de filme.

Tudo isto seria demasiado banal, não fora o facto de, eventualmente, todo o processo poder demorar consideravelmente menos tempo. É que após os momentos de absoluto terror que me obrigam a separar extractos de conta das actas das assembleias de condóminos extraordinárias, sou invadido por uma espécie de paz interior. Quando mergulho na separação dos papéis sinto-me assim mesmo. Mergulhado… no mais profundo e silencioso fundo do mar… silêncio… solidão… uma pequena e leve sensação de enjoo… eu comigo mesmo num ambiente hostil, mas que me acalma e que pareço dominar, ao mesmo tempo que me causa uma certa claustrofobia com a pressão do mar a tentar penetrar os meus tímpanos e a certeza de que não posso fugir dali assim sem mais.

Nesses momentos de mergulho, olho-me nos olhos e já não sou eu que conduzo. Sou eu conduzido pelos papéis. Um colorido faz-me lembrar o livro que comprei (“Inteligência Emocional”) enquanto esperava pelo Bártolo no Saldanha; dois negros apontam-me o teatro que fui ver com a M., oferta dos suíços que abrigámos em casa durante uma semana antes do Natal; um pequeno e grosso, riscado no dorso, levou-me para junto do restaurante cabo verdiano dos anos do Tintim (e depois, também, da M.); um cardume amarfanhado e riscado em tons de azul mostraram-me novamente os Serviços do Hike de Torres Vedras e os textos que criámos para a Drave.

Sem saber como, calmamente nadaram junto à areia branca que ainda cobria a mesa do escritório e já se espalhara pelo chão e pela sala, como se tivessem sido descobertos do seu esconderijo, dois pedaços brancos. Eram os do “Litlle Children” de Todd Field , última vez que me sentei nos bancos coçados do Quarteto.

De repente são duas da manhã e ainda não foi hoje que entreguei o IRS.

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Pop Corns

Fruto do acaso, a família foi contemplada com bilhetes para o espectáculo “Disney on Ice-Princesas”.

Pouco apreciador de espectáculos infantis, a condição da paternidade foi-me levando a mudar de opinião. O facto de possuirmos uma responsabilidade acrescida perante um ser muito pequeno, leva-nos a sacrifícios inauditos. Começamos pelas noites sem dormir, passamos pelas não saídas, e acabamos por abdicar da parte do meio da torrada. Outro exemplo, pelo menos no meu caso, foi o passar a assistir a alguns espectáculos infantis. Surpreendentemente, confesso, gostei de praticamente todos eles, deixando os mesmos de figurar na categoria de sacrifícios.

Assim, não foi, de todo, angustiante saber da sorte que nos tinha calhado.

As 20:00h a que tinha início o espectáculo causava problemas, pois impedia-nos de jantar e prometia uma correria louca do Cacém até Lisboa. Cheguei a casa às 19:35h.

Carregar com a cria não foi mais difícil do que habitualmente, à excepção da garrafa de água que ficou esquecida e do bollycao que ela me roubou (lá se foi o meu jantar). Os brinquedos foram com ela, o casaco, o gorro, a fruta e as bolachas também.

Ao chegar ao Pavilhão Atlântico (20:10h), não me surpreenderam os vários progenitores que corriam apressados com crias às cavalitas e juvenis arrastados pelas mãos. Também aqueles carregavam a dose extra de agasalhos e de alimentos prontos a regurgitar.

“Que bom”, pensei. E é realmente bom quando não somos os únicos. Até os Xutos perceberam isso.

Entretanto comecei a ficar um pouco cansado de ver todas as princesas e príncipes encantados a desfilar perante os olhos de uma multidão de crianças eufóricas e pais convencidos, sob forma de atletas olímpicos frustrados ou com alguns anitos a mais… tudo ao som dos filmes que quase todos tivemos de ver dobrados em português. Nunca mais chega o intervalo…

Quando este chegou, revelou-se fatal o esquecimento da garrafa de água. Lá tive de me levantar, passar por todos os Joões Marias, Tomáses e Marianas que, eufóricos, sucumbiam às tentações dos souvenires estrategicamente dispostos às saídas do recinto. Os mais novos eram acompanhados pelas mães de fraldas de papel “Dodot” na mão. Depois de ter pago 1.50€ pela garrafinha de água, fui contagiado pelo rebuliço. Dirigi-me a uma das inúmeras bancas de pipocas e resolvi esperar pela minha vez. Reparei que só havia uns baldes de plástico (enfeitados com motivos da Disney) com um banal saco de pipocas lá dentro. Ao lado, estavam dispostas várias bolas de algodão doce (também elas fechadas num hermético saco de plástico), adornadas por uma coroa de princesa, dourada, que segurava as orelhas da Minie (ou do Mickey, caso o comprador fosse do sexo oposto). Á medida que me aproximava da banca, ia conseguindo escutar as vozes dos pobres rapazes e raparigas que, uniformizados de acordo com o ambiente princepesco, i.e., de farda dourada traçada ao peito com fita ainda mais dourada, e obrigados a usar na cabeça um ridículo chapéu de soldadinho de chumbo (uns) ou um boné de basebol azul identificando-os com o famoso criador dos desenhos animados (outros), se esforçavam por ouvir o que quer que seja no meio do eco provocado por centenas de vozinhas estridentes que se multiplicavam e sobrepunham umas às outras, fruto da ganância dos mais pequenos.

Finalmente chegou a minha vez e, espantado, oiço a voz do pobre rapaz: “Pop Corns?”
Obviamente respondo: “Sim, pipocas!”
“Sorry?”



Não podia ser… o gajo era americano! Os pobres rapazes e pobres raparigas, eram americanos!

E eu com pena deles… a imaginar quantos ainda teriam de ir estudar para a frequência do dia seguinte. E eu agradecido por existirem empresas de trabalho temporário que permitiam aos nossos jovens (universitários ou não) ganhar uns trocos para depois os gastarem em cervejas, roupas, cd’s ou ipods…

...

“Yes, pop corns, please! How much is it?”
“8 euros, please!”



“And the sweet cotton?”
“9”



Voltei para o recinto com a minha preciosa garrafinha de água e, novamente, cheguei à conclusão que somos o cú da América!

sexta-feira, 23 de março de 2007

Tribuna Numeru Quattor

A minha veia sofista latejava sem me doer. Foi inchando, qual variz azul arrocheada, pronta a explodir sob a forma de hemorragia interna.

Sem me dar conta fui sendo seduzido pelas tribunas dos grandes e dos crescidos. A tentação de modificar os que já foram modificados é muito forte. E dá um gozo bestial (de besta, animalesca).

A formação profissional já me levou a bancos de gestão de fortunas pessoais, a hospitais, seguradoras, empresas de contabilidade e à prisão do Linhó. Também já me levou à Roménia.

Com flipcharts, jogos pedagógicos, quadros brancos e câmaras portáteis (sim, porque eu evito ao máximo os tenebrosos powerpoints), subo para o púlpito da sala de formação, bonito mas não engravatado, e lanço-me aos adultos!

A sensação é maravilhosa! Costumo compará-la com o namoro. Há sedução, descobrir e deixar-se descobrir, viver vidas e deixar viver a nossa. As relações tornam-se fortes e a monotonia não existe. Há jantares de final de curso (muitos), lágrimas e copos. Há terapias de grupo. Há momentos fortes, muito fortes. Iguais, só nos escuteiros.

A sensação de mudar o mundo também surge, por vezes. Mas essa, creio, é a última tentação dos sofistas.

terça-feira, 20 de março de 2007

AmericANUS

Foram uns dias diferentes.

Com alguns dias de férias por gozar (e tinham de ser gozados até ao final do mês), a família resolveu investir no desporto preferido. O destino escolhido foi Além Tejo.

Uma praia fluvial com vista para o castelo de Belver, emoldurada pela época baixa, qual moldura de carvalho em talha dourada, adornava a obra de arte. A comida e a gentileza das gentes fez o resto. Foi amor à primeira vista.

Nas duas primeiras noites ficámos com o hotel só para nós. Até as senhoras da recepção, lavandaria, cozinha, limpeza, etc. (eram só duas) se foram embora, entregando-nos a chave da casa à beira Tejo plantada. Tivemos sorte com o tempo. O sol abraçou-nos com força e nós respondemos.

Quando chegaram os dias de descanso semanal tivemos de partilhar o abraço. Aos poucos o nosso quadro foi sendo colorido por seres ávidos da mesma paixão, que até então era nossa e dos poucos pescadores reformados que trocavam com o Tejo migalhas de pão por peixe miúdo. Invejosos!

Um grupo de jovens pós universitários sentou-se ao nosso lado e pediu qualquer coisa para beber na esplanada que só abre ao fim de semana na mais baixa das épocas. Acho que também petiscaram feijoada de lebre e polvo frito (mas quem é que pede polvo frito nestas paragens?). O sol, generoso, afagava-me os cabelos, como se me estivesse a pedir desculpa.

As conversas deles cheiravam a Alentejo. Pelo menos de dois ou três que tinham a pronúncia mais carregada. Os casais falavam das férias que tinham feito: Cuba era o destino predilecto de um deles, tanto que já o tinham repetido. ‘Era melhor do que Cabo Verde, República Dominicana e Salvador. Podiam sair dos “resorts” sem se sentirem em perigo. Claro que os outros destinos também foram bons, tinham feitos “aquelas excursões” todas e deu para ver a realidade dos sítios, mas Cuba… Cuba era diferente. Parece que tinha parado no tempo… Vejam lá que eles, por exemplo, comem uns pães com fiambre ao almoço numa espécie de roulotes, e nós, sentados numa explanada, víamos o fiambre coberto de moscas nas traseiras da roulote. Na República Dominicana não vês nada disso!’

Ao jantar, outro grupo de jovens pós universitários a usufruírem dos primeiros salários ganhos em instituições prestigiadas, oásis de emprego no deserto que outrora fora o celeiro de Portugal. As conversas deles invadiram o nosso peixe do rio para elas e secretos de porco preto para ele. Desta vez tratava-se de uma espécie de avaliação dos primeiros tempos de vida laboral, onde cada um contava as suas venturas, desventuras e poucas aventuras: ‘Temos de ser melhores que os outros. Como o mercado de emprego está, já não basta ser igual aos outros, temos de ser melhores. Mas não me interessa o dinheiro, ás vezes o principal é o reconhecimento. Sim, mas se não fizeres a diferença, se não ficares até mais tarde, se não fores o primeiro, o reconhecimento nunca chegará!’

Fico contente por saber que ainda há jovens pós universitários no nosso Alentejo, esse mar amarelo-torrado, que vende as suas casas brancas em frente às Igrejas a preços de saldo, agora que os últimos velhos inevitavelmente desapareceram. Sim, porque os montes, esses estão cada vez mais caros. E é precisamente nesses que vivem os pais destes jovens pós universitários. É impossível alguém conseguir viver no Alentejo, arranjar emprego e fazer viagens ao estrangeiro, a não ser que tenha um pai rico e influente. É que não há pessoas suficientes para fazer seja o que for, organizar qualquer coisa, vender os produtos que já não se fazem. Ou trabalhamos para um banco, para uma seguradora ou para a câmara. E, como todos sabemos, esses poisos em terras destas estão reservados à partida.

Mas, ainda assim, fico contente por haver quem lá fique.

O que me envergonha é a mentalidade deles. Seria de esperar que fossem diferentes porque fizeram opções diferentes. Mas não. A nossa mentalidade está a ficar toda igual. É o sucesso, a competição, o dinheiro, o sucesso. São as viagens aos mesmos sítios, os mesmos filmes vistos e as iguais roupas vestidas. Depois emitimos opiniões que julgamos originais e fundamentadas, quando são iguais às deles. Estamos cada vez mais fechados no nosso ocidental mundo imperial.

Depois queixamo-nos de andar sempre na cauda da Europa. Eu diria mais. Diria que caminhamos para o cu da América!

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Executi-vos

De quando em vez uma empresa de programação contacta-me para conceber, preparar e animar acções de formação para os seus clientes.

A empresa desenvolve os programas à medida do cliente, e depois este precisa de formação sobre o programa que encomendou à sua medida.

Parece um paradoxo, mas não o é assim tanto. Com efeito, os clientes que têm capacidade para comprar programas à medida são clientes diferentes daqueles que estamos habituados. Normalmente nós somos os clientes dos clientes da empresa que, de quando em vez, me contacta. São clientes grandes.

Estive esta semana num desses clientes. Telefonaram-me ainda antes de ir para a Roménia a saber se, uma vez mais, estaria interessado em, desta vez, elaborar manuais pedagógicos e de utilizador de uma aplicação que estavam a desenvolver para uma seguradora. Fiquei a saber que era uma grande.

Ainda antes de ir para a Roménia disse que sim.

Meia azambuado, lá cheguei uma terça feira pós referendo, bem pela manhã que estes clientes gostam de nos ver por lá bem cedo. Cheguei antes das nove. Telefonei e foram-me buscar ao hall de entrada. Prédio antigo totalmente remodelado. Agora novamente em obras, força dos impostos que não se querem pagar.

Gosto dos meus colegas informáticos. Não percebo nada do que eles dizem quando falam uns com os outros, mas basta uma pequena pergunta e são capazes de transformar um mar de bites, databases, warehoses, javas e securitylistupdates numa potente gargalhada. São todos jovens, inteligentes e calados. Engravatados. Lá um ou outro fala um pouco mais, mas, como disse, não entendo quase nada. Eles também não percebem como alguém pode ter estudado filosofia. Somos mundos estranhos.

O ambiente é de openspace e de vez em quando ouve-se uma pergunta: “Alguém sabe como se desliga a porta do servidor em ambiente FileNet?” “Pergunta ao Luís!” “Onde é que ele está?” “Não está aí?” “Não”… E, confesso, por vezes fico maravilhado. Não só com o tipo de nomenclatura que utilizam, qual dialecto indígena de uma tribo isolada na sua selva de cabos, discos, teclados e pendrives, mas principalmente com a entreajuda deles. Nunca percebi se era mesmo entreajuda ou um secreto desejo de descobrir mais, de descobrir como, de saber o porquê… quais crianças a brincar com legos electrónicos.

Neste projecto, para além dos meus colegas programadores, há Project managers, Project coordinators, Project consulters e Sénior advisers. Dois são alemães, um é inglês e outro francês. Foi com o último que falei mais. Vem a Portugal uma vez por semana. Normalmente à quinta-feira. É um alto quadro de uma empresa que criou uma plataforma sob a qual uma série de aplicações correm. A empresa acabou de ser adquirida pela IBM.

Senti-me, de repente, muito próximo destes Project seniores qualquer coisa. Não pelo que são. Não pelo que ganham. Não pelo que fazem na vida.

Eu era um romeno a olhar para um português.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Voto de Castidade

Já cheguei à quase uma semana, mas confesso-me ainda um pouco Romeno.

A experiência foi tão forte, tão cansativa, tão intensa, tão… que me custa a acordar.

(In)Felizmente a familiariedade vai-se apoderando de mim aos poucos e já consigo passar muito tempo sem pensar nos que lá conheci.

Hoje foi o dia do referendo e fiquei contente com o resultado. Senti-me bem ao entrar na escolinha, passear pelo pequeno jardim onde estão as tartarugas grandes abandonadas pelos pais dos alunos que não têm coragem de dizer não, pelo lago dos patos diferentes, pelo átrio dos porquinhos da índia recheados de pão e bolachas Maria. O cheiro a castanha assada, a maca dos bombeiros com moedas de cêntimo a imitar esmolas e os bolos “caseiros” embrulhados em papel celofane foram os parasitas desta multidão.

De vez em quando sabe bem ver uma multidão, fazer-lhe festas, sentir-lhe o pelo macio, escutar como ronrona.

Esta era engraçada. Muito colorida, como o são quase todas, cheirava a perfumes e estava muito bem penteadinha. Por vezes conseguíamos vislumbrar uns chapéus muito elegantes, com abas largas e fitas de feltro, que sobressaíam de cordões e penduricalhos dourados. Muitos tecidos a condizer e expressões graves nos rostos. Esta não se babava para cima de nós com líquidos pegajosos nem com suores quentes. Era uma multidão pacífica. Fina. Distinta.

Pelo menos enquanto me deixou afagá-la.

Esta está, certamente, habituada a fazer as suas porcarias em Espanha, Londres ou Holanda. Por isso hoje está calma e tranquila.

Da última vez, quando estava em causa um presidente que lhe poria a mão nos bolsos (em vez da mão no útero) ela não estava assim. Não estava "não".

Ah pois sim!

sábado, 10 de fevereiro de 2007

Multumesc


To all I, since then, carry with me.

It’s not easy to forget all that we’ve been trough.

It’s not easy to forget all you’ve done for me.

Andrei, Krisztina-Bella, Doina, Adela, Radu Pop, Radu Roman, Nicoleta, Ruxandra, Tereza, Zsuzsanna, Mediana and Alina…

For me Romania has your colors, your voices, your clothes, your smiles… and my memories.

Servus

Oh...

And the taste of Restaurantul Predeale

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Infinitamente acompanhados


Já estive em cidades cosmopolitas.

A primeira foi Londres. Lembro-me das cores das pessoas, das suas roupas extravagantes, dos sons que mesclavam de condensação o taciturno nevoeiro que nascia no Tamisa. Tudo era colorido. Até os polícias com os, agora habituais, coletes fluorescentes e chapéus pretos ou axadrezados. Tinha 19 anos e o facto de mergulhar nos sons do mundo fez-me tornar simultaneamente minúsculo e gigante. Nunca me hei-de esquecer da sensação de entrar num café e ouvir, reconhecíveis, 6 ou 7 línguas diferentes.

Depois estive em Basileia (para os imigrantes, Básel) na Suíça. Nesta a sensação foi mais duradoura. Estive 6 meses e o mergulho foi diferente. Passei a fazer parte do ecossistema. Em Londres tinha sido um banho rápido seguido de uma soneca na areia aquecido pelo sol da familiariedade. No restaurante onde eu trabalhava (num deles) estavam representadas 5 nações: Portugal, Tamil, França, Holanda e Jugoslávia. Foi antes da guerra. Agora seriam considerados Albaneses os dois empregados de mesa que me pediam os cafés, os martinis e as São Peligrino. No piso do hospital onde o meu primo encontrou o que em Portugal não havia, estavam representadas 40. Em todo o lado se ouvia tudo, se via de tudo e se podia comer de alguma coisa. Nunca fui tão livre nem tão prisioneiro. Os Suíços têm destas coisas.

A última foi Nova Iorque. Ainda com as torres gémeas a balançarem ao sabor dos ventos que, não fora os pêndulos instalados na sua estrutura, as tentavam derrubar, ela acolheu-nos com a sofreguidão de um vórtice indomado. A grande maçã seduz. A grande maçã conquista. A grande maçã é grande e alimenta. Tanto os que lá vivem como os que a visitam. A sensação de estar no centro do mundo é irreprimível e as analogias com uma Lisboa no ano de 1600 são uma constante. É lá que tudo se passa. As executivas de fato completo (blazer e saia, claro) a correrem de um lado para o outro de patins em linha ou de ténis, os coreanos que empurram cabides de roupa acabada de limpar a seco por entre os bafos fumegantes do “subway”, os australianos que tocam nas estações do mesmo, noutra escutamos “aleluiah”s de mini coros negros vestidos de azul celeste e branco. Tudo em 5 minutos. Ficámos lá 5 dias.

Turgu Mures não é cosmopolita. Turgu Mures é assim. Só assim. Tem Romenos, Ciganos e Húngaros. Alguns Alemães. Os que resolveram ficar depois da queda do muro. Depois da revolução. Da segunda revolução. E assim é há séculos e séculos.

Na praça principal podemos confirmar isso mesmo. É domingo e os sinos tocam. Cada um dirige-se para a sua igreja. Para a sua Catedral. Na mesma rua temos 3: a ortodoxa, a cristã e, ao fundo, quase sempre vazia, a do protestante Lutero.

Os ciganos rezam de outras maneiras.