sexta-feira, 23 de março de 2007

Tribuna Numeru Quattor

A minha veia sofista latejava sem me doer. Foi inchando, qual variz azul arrocheada, pronta a explodir sob a forma de hemorragia interna.

Sem me dar conta fui sendo seduzido pelas tribunas dos grandes e dos crescidos. A tentação de modificar os que já foram modificados é muito forte. E dá um gozo bestial (de besta, animalesca).

A formação profissional já me levou a bancos de gestão de fortunas pessoais, a hospitais, seguradoras, empresas de contabilidade e à prisão do Linhó. Também já me levou à Roménia.

Com flipcharts, jogos pedagógicos, quadros brancos e câmaras portáteis (sim, porque eu evito ao máximo os tenebrosos powerpoints), subo para o púlpito da sala de formação, bonito mas não engravatado, e lanço-me aos adultos!

A sensação é maravilhosa! Costumo compará-la com o namoro. Há sedução, descobrir e deixar-se descobrir, viver vidas e deixar viver a nossa. As relações tornam-se fortes e a monotonia não existe. Há jantares de final de curso (muitos), lágrimas e copos. Há terapias de grupo. Há momentos fortes, muito fortes. Iguais, só nos escuteiros.

A sensação de mudar o mundo também surge, por vezes. Mas essa, creio, é a última tentação dos sofistas.

terça-feira, 20 de março de 2007

AmericANUS

Foram uns dias diferentes.

Com alguns dias de férias por gozar (e tinham de ser gozados até ao final do mês), a família resolveu investir no desporto preferido. O destino escolhido foi Além Tejo.

Uma praia fluvial com vista para o castelo de Belver, emoldurada pela época baixa, qual moldura de carvalho em talha dourada, adornava a obra de arte. A comida e a gentileza das gentes fez o resto. Foi amor à primeira vista.

Nas duas primeiras noites ficámos com o hotel só para nós. Até as senhoras da recepção, lavandaria, cozinha, limpeza, etc. (eram só duas) se foram embora, entregando-nos a chave da casa à beira Tejo plantada. Tivemos sorte com o tempo. O sol abraçou-nos com força e nós respondemos.

Quando chegaram os dias de descanso semanal tivemos de partilhar o abraço. Aos poucos o nosso quadro foi sendo colorido por seres ávidos da mesma paixão, que até então era nossa e dos poucos pescadores reformados que trocavam com o Tejo migalhas de pão por peixe miúdo. Invejosos!

Um grupo de jovens pós universitários sentou-se ao nosso lado e pediu qualquer coisa para beber na esplanada que só abre ao fim de semana na mais baixa das épocas. Acho que também petiscaram feijoada de lebre e polvo frito (mas quem é que pede polvo frito nestas paragens?). O sol, generoso, afagava-me os cabelos, como se me estivesse a pedir desculpa.

As conversas deles cheiravam a Alentejo. Pelo menos de dois ou três que tinham a pronúncia mais carregada. Os casais falavam das férias que tinham feito: Cuba era o destino predilecto de um deles, tanto que já o tinham repetido. ‘Era melhor do que Cabo Verde, República Dominicana e Salvador. Podiam sair dos “resorts” sem se sentirem em perigo. Claro que os outros destinos também foram bons, tinham feitos “aquelas excursões” todas e deu para ver a realidade dos sítios, mas Cuba… Cuba era diferente. Parece que tinha parado no tempo… Vejam lá que eles, por exemplo, comem uns pães com fiambre ao almoço numa espécie de roulotes, e nós, sentados numa explanada, víamos o fiambre coberto de moscas nas traseiras da roulote. Na República Dominicana não vês nada disso!’

Ao jantar, outro grupo de jovens pós universitários a usufruírem dos primeiros salários ganhos em instituições prestigiadas, oásis de emprego no deserto que outrora fora o celeiro de Portugal. As conversas deles invadiram o nosso peixe do rio para elas e secretos de porco preto para ele. Desta vez tratava-se de uma espécie de avaliação dos primeiros tempos de vida laboral, onde cada um contava as suas venturas, desventuras e poucas aventuras: ‘Temos de ser melhores que os outros. Como o mercado de emprego está, já não basta ser igual aos outros, temos de ser melhores. Mas não me interessa o dinheiro, ás vezes o principal é o reconhecimento. Sim, mas se não fizeres a diferença, se não ficares até mais tarde, se não fores o primeiro, o reconhecimento nunca chegará!’

Fico contente por saber que ainda há jovens pós universitários no nosso Alentejo, esse mar amarelo-torrado, que vende as suas casas brancas em frente às Igrejas a preços de saldo, agora que os últimos velhos inevitavelmente desapareceram. Sim, porque os montes, esses estão cada vez mais caros. E é precisamente nesses que vivem os pais destes jovens pós universitários. É impossível alguém conseguir viver no Alentejo, arranjar emprego e fazer viagens ao estrangeiro, a não ser que tenha um pai rico e influente. É que não há pessoas suficientes para fazer seja o que for, organizar qualquer coisa, vender os produtos que já não se fazem. Ou trabalhamos para um banco, para uma seguradora ou para a câmara. E, como todos sabemos, esses poisos em terras destas estão reservados à partida.

Mas, ainda assim, fico contente por haver quem lá fique.

O que me envergonha é a mentalidade deles. Seria de esperar que fossem diferentes porque fizeram opções diferentes. Mas não. A nossa mentalidade está a ficar toda igual. É o sucesso, a competição, o dinheiro, o sucesso. São as viagens aos mesmos sítios, os mesmos filmes vistos e as iguais roupas vestidas. Depois emitimos opiniões que julgamos originais e fundamentadas, quando são iguais às deles. Estamos cada vez mais fechados no nosso ocidental mundo imperial.

Depois queixamo-nos de andar sempre na cauda da Europa. Eu diria mais. Diria que caminhamos para o cu da América!