segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Cassete Pirata

Já assisti a umas seis ou sete ecografias.

O processo é sempre o mesmo. Pedem para ela desapertar a roupa e colocam-lhe um papel azul reciclado (pelo menos tem esse aspecto) na zona púbica, mal se deita na marquesa de napa preta. Colocam-lhe um líquido viscoso na barriga, estilo gel para o cabelo, mas sem o cheiro característico deste, e, então, a médica ginecologista (ou obstetra) pega no scanner e passa-o rapidamente por toda a superfície do ventre dilatado pelo novo ser que procura crescer em ambiente condicionado, de forma a espalhar o gel para facilitar a progressão do aparelho em forma de “T”.

Nesse momento, e só então, reparamos que a médica se transforma em comandante de avião comercial. A sala escurecida é agora um cockpit, o monitor um radar, as luzes são alarmes, os botões ficam ignições e os interruptores comandos de flaps.



No radar surgem imagens imperceptíveis que só a comandante percebe. Vêm-se linhas que ela desenha e diz coisas que a co-piloto escreve num computador, suspeito eu que seja o diário de bordo.

A comandante vai falando e tentando descrever o que só ela consegue ver: Aqui está a coluna, os hemisférios do cérebro, os rins, o fígado…

Maravilha… quem diria…

A ecografia, como o próprio nome indica, baseia-se no princípio físico do eco, i.e., o captar do reflexo da onda provocada pelo som, quando esta encontra no seu percurso uma barreira ou um obstáculo (que deverá ser denso e feito de um material que não absorva as ondas). O ser humano apenas consegue captar o reflexo da onda do som, se esta encontrar um obstáculo a uma distância superior a 17 metros, uma vez que o ouvido e cérebro humanos apenas conseguem distinguir sons com uma diferença de 0,1 segundos. Esta máquina não. Ultrapassa as limitações da nossa obsoleta condição e eleva-nos a um estado de evolução bio-tecnológico ímpar, qual super homens com mais sentidos do que os outros.

A única coisa que me leva a acreditar que, das seis ou sete vezes, não estive sempre a ver a mesma cassete previamente gravada e sistematicamente reproduzida para os sucessivos casais que, ordeiramente e em silêncio, se vão iludindo perante uma máquina/cockpit (não sem antes serem vítimas de uma dramatização convincente - despir, colocar gel para o cabelo, o pormenor do papelinho azul), são as impressões oferecidas e que podemos levar para casa, em papel de fax, com imagens de faces e membros dificilmente reconhecíveis como sendo de um embrião humano.



Mas mesmo estas, apesar de diferentes de ecografia para ecografia, podiam já ter sido impressas, ou não?

Afinal, quem se dá ao trabalho de colocar gel e papelinhos azuis…

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

R-X

FAÇA O FAVOR DE RETIRAR TODOS OS OBJECTOS METÁLICOS

Foi em Novembro de 1895, mais precisamente numa 6ª feira, que o professor de física Wilhelm Conrad Röntgen, alemão, se encontrou acidentalmente com um novo tipo de raios. Investigando os invisíveis raios produzidos num díodo (feixes de electrões que se movem de um cátodo para um ânodo num tubo hermeticamente fechado) reparou que estes criavam uma feixe luminoso quando escurecidos. A sua experiência consistia em criar uma “janela” de alumínio por onde os raios pudessem sair e uma folha de cartão pintada com barium platinocyanide onde os mesmos incidiriam. Ora, ao incidirem nessa folha de cartão, Röntgen reparou que criavam uma luz fluorescente nada comum. Estavam descobertos, acidentalmente, os raios x.

SIM, SIM, A ALIANÇA TAMBÉM…

O nome dado a estes raios, que mais tarde iriam ficar mundialmente conhecidos e serviriam de imaginários a um sem número de romances, ficções e heróis da banda desenhada, não foi, tal como a descoberta dos mesmos, propositada. Pura e simplesmente ficaram designados pela expressão matemática do número desconhecido.

Foram 15 dias de intensas experiências, onde o professor passou a dormir no laboratório, escrevendo incansavelmente as suas notas.

Sensivelmente duas semanas após a descoberta da estranha luz fluorescente, tirou a primeira imagem por intermédio dos novos raios. A imagem foi a da mão da sua esposa, Anna Bertha. Consta que, ao observar a imagem do esqueleto da sua própria mão, Anna terá exclamado: “Eu vi a minha morte!”



AGORA DEITE-SE DE BARRIGA PARA CIMA. TEM A CERTEZA QUE NÃO TEM BOTÕES METÁLICOS?

Num destes fins de semana estive com a malta da minha rua. Fomos todos beber e comer a uma cervejaria dos subúrbios. O motivo foi o casamento do Frederico (ou Fred, como é conhecido pelos que cresceram juntos). Eu não fui convidado, claro, pois sou de uma geração mais velha. Quem é da geração dele são os nossos irmãos. E esses foram-no.

No final de um dia de verão, com as luzes dos candeeiros já acesas, alguém lançou uma bola à imaginária barra riscada entre as portas dos prédios. Eram tempos em que os carros não ocupavam todos os lugares de estacionamento. O Fred, miudito, estava à baliza e gritou 3 vezes: “Foi à ‘raba!’”. Um dia depois do seu casamento ainda é conhecido por isso. Há cicatrizes que a vida não gosta de apagar.

AGORA FIQUE QUIETO, SIM?

O convite veio do Miguel. O Miguel era o meu vizinho de baixo.

Pouco depois de se ter mudado para o nosso bairro, enganou-se e foi tocar à nossa porta. Quando a abrimos, o pequenito Miguel, assustado, desatou a chorar. Os pais não estavam em casa. Ainda agora tinham chegado a uma casa nova e já se tinham ido embora. Entrou e ficámos amigos para o resto da tarde. Passávamos os dias à espera de irmos brincar para casa um do outro. Eu sempre preferi os brinquedos dele e gosto de acreditar que ele também preferia os meus. Quando os trocávamos (e eu finalmente podia levar os soldadinhos do Miguel para o campo de batalha na colcha amachucada da minha cama) já éramos amigos para o resto da vida.

Os nossos irmãos nasceram no mesmo ano. O dele, o Filipe, estava sentado ao lado dele. A minha ficou em casa. Nessa noite não pode reencontrar quem nunca perdeu.

TCHACK!

Do outro lado estava o Nuno. Vivia no prédio ao lado e só ficámos amigos mais tarde. Ainda assim tivemos tempo para fazer jogos de futebol até ao por do sol e bastante depois disso. O Nuno jogava muito bem e todos queriam ser da equipa dele. Para além disso nunca se zangava e tinha quase sempre razão. Só reparei que gaguejava quando alguém mo disse. Há cicatrizes que só existem porque os outros querem.

O irmão também lá estava com a sua namorada nova. O Joca veio da Escócia de propósito para o casório. E desta vez a namorada é Polaca. Já lhe tínhamos conhecido uma Inglesa e outra Russa ou Lituana.

VIRE-SE AGORA DE BARRIGA PARA BAIXO, ESTÁ BEM?

Na ponta estava o Pedro. Vivia no prédio da frente e sempre foi o mais conflituoso. Nunca gostou de perder nem que os outros tivessem razão. Era sempre bom tê-lo na nossa equipa, pois dava caneladas nos outros a corria até não poder mais. Foi dos primeiros a falar-me sobre política e a mostrar-me os fundamentos do comunismo, apesar de uma ano mais novo. Era óptimo quando o Pedro podia vir à rua, pois assim já dava para fazermos uma equipa e jogar com a outra rua. E também atirava pedras com mais força do que qualquer um de nós!

O Hugo estava sentado em frente ao irmão mais velho. Ele também se fez forte e foi embora. Rumou à Suíça e aproveitou as promoções da easyjets para vir ao casamento.

AGORA QUIETO, POR FAVOR

Bastante mais tarde chegou o Ruben com a namorada. O Ruben era o irmão da Sandra, a rapariga mais bonita da rua. Todos nos apaixonámos por ela e, cada um à sua maneira, acreditou que ela gostava era dele. Ficámos a saber que já tem 3 filhos e, apesar de recentemente divorciada, foi viver para Espanha.

TCHACK

O motivo do encontro, afinal, não foi o casório, mas a presença do Joca e do Hugo. Manos mais novos, fizeram-se fortes e foram-se embora. É raro vê-los e muito mais precioso encontrá-los juntos. É tão bom quando alguém trata de juntar os que raramente se juntam.

MUITO BEM, PODE ESPERAR LÁ FORA QUE EU JÁ O CHAMO.

Ao contrário da Anna Bertha, sempre que vejo a malta da R-X, vejo a minha infância.