quinta-feira, 26 de julho de 2007

Jogging

Quando a chuva abandona os céus, assustada pelos gritos de calor que a terra lhe lança ao inclinar perigosamente a sua cabeça em direcção ao Sol e deixando propositadamente os pés ao frio, como que para compensar o conforto de uns com o desconforto de outros, a nossa cidade muda de cor. De cor e não só. Também muda de atitude.

Eu, pelo menos, mudo.

Exemplo disso é a minha sádica vontade de calçar uns ténis, vestir uma T-shirt cinzenta e copiar os políticos modernos correndo pela manhã ou ao final da tarde enquanto o comum dos mortais me observa, no meio de uns quantos seguranças de óculos escuros e coisas esquisitas nas orelhas.

Obviamente não sou seguido pelos senhores musculados e de semblante carregado, com os penteados imaculadamente imaculados por um miraculoso gel, nem tão pouco sou capaz de correr logo pela manhã.

No entanto sou observado pelo comum dos mortais.

Ao chegar cruzo-me com os clientes de um Clube de Ténis, Ginásio, Squash , Body Combat e coisas afins, que saem dos seus carros de gama alta, enfeitados por permanentes fingidamente descuidadas (elas) e fatos propositadamente desengravatados minutos antes de entrarem em Clube de gente fina (eles). O olhar que me lançam não é propriamente piedoso. Antes um misto de reprovação e incompreensão.

Já em plena libertação de toxinas, cruzo-me com os caninos que aproveitam o final da tarde para passear os donos. Estes são mais perigosos. Nem sempre acondicionam os seus melhores amigos com as respectivas trelas e é normal que me observem com apreensão: “Se o raça do cão lhe dá uma dentada, estou em sarilhos!”, pelo que me olham quase sempre com medo. Pelo canto do olho, enquanto o outro canto segue os fiéis amigos.

Passo sempre por vários casais de namorados, sentados em bancos de madeira cuidada, quase sempre à sombra de olhares indiscretos. Mestres em visão periférica e com a adrenalina perto do limite, transformam os sinais de sexo explícito em implícito. Não resisto em reatar um atacador supostamente mal apertado na proximidade dos mais afoitos. O que é bom deve ser sofrido, certo?

Há um parque infantil no fundo do jardim, onde as energias normalmente já não são muitas e o esforço tem de ser bem doseado (é o início de uma subida lixada). Os risos das crianças, os pais cansados ou os avós babados observam-me de acordo com a curiosidade da respectiva idade. E com alguma compreensão, também. Á excepção dos primeiros todos estamos a fazer um frete. Pelo menos passados alguns minutos.

Também há os sem-abrigo. Esses mal olham para mim. Se não estivesse a correr, talvez me pedissem um cigarro ou umas moedas. Assim limitam-se a enrolar mais um Detroit ou a beber mais um gole de vinho para acompanhar a carcaça com manteiga, escondida no saco de plástico velho que faz barulho para esconder a solidão.

Claro que passo por compichas. Aqueles que, como eu, não conseguem resistir ao sádico apelo da translação terrestre. Há-os de todas as idades, raças e géneros. Há o indiano que corre sempre em calças de fato de treino, cantando os mesmos sons regurgitados pelos headphones da loja do pai que um dia irá ser sua; há o casal que não corre, apenas marcha seguindo a prescrição do médico dos pulmões ou do coração, apesar dos cerca de 40 anos que aparentam 50 que ainda não têm; há o velho gordo que mostra sempre um pouco do umbigo e encharcaria t-shirt mesmo se não corresse. Todos nos olhamos com simpatia, aproveitando para contar as voltas que cada um dos outros dá ao circuito. Depois há o “Pró”. Sempre com roupas a condizer, nunca sua e pára em todas as estações do circuito de manutenção para realizar os exercícios mais difíceis (os de cor castanha segundo o manual de instruções prontamente colocado antes de cada aparelho). Pelo menos quando alguém passa por ele.

Mas dos que eu mais gosto são os Ucranianos, Bielorussos e Romenos que costumam fazer-me companhia ao Domingo. Juntam-se no parque de merendas e enchem as mesas de garrafas de vodka de marcas esquisitas ou latas de cerveja do LIDL e comidas com molhos e cheiros desconhecidos. Dançam ao som dos carros mal estacionados de vidros abertos e portas escancaradas que teimam em reproduzir música pimba da terra deles. Outras vezes conversam sobre projectos de casas a construir nas mesmas terras, assentes em euros que custam a ganhar. Matam saudades, matam a fome, matam a sede. Matam porque não estão mortos.

Ao passar por eles sou agraciado com urros e palmas dos menos sóbrios. Homens e mulheres de cabelos louros aplaudem-me com sorrisos marcados por dentes de ouro, ao mesmo tempo que sou ultrapassado pelo reformado que faz do Parque José Gomes Ferreira mais do que um conjunto de árvores antes de chegar à Rotunda do Relógio.