quinta-feira, 27 de setembro de 2007

A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty

Primeiro pensava que este tipo de pensamentos só me assaltavam a mim…

Depois percebi que não.

De seguida pensei que só me assaltariam da primeira vez… as primeiras vezes são sempre piores…

Pelos vistos também não.

“O coração apertou-se-me. Não muito leve. O céu estava limpo, a luz transparente e, contudo, tenaz, insistente, sentia desprender-se à minha volta um cheiro insípido, como se sob a sua película lustrosa todos estes instantes estivessem apodrecidos no coração: era o cheiro insípido da resignação.
Hélène soergueu-se.
— Achas absurdo termos filhos, não é?
Olhei-a surpreendido.
— Tens vontade de os ter?
— Sim e não. Pergunto-me se isso não enriquecerá esta vida.
Sorri.
— E não querias perder uma ocasião de enriquecer?
— Não te rias. O que é que tu achas, tu?
— Antigamente, achava insensato lançar alguém no mundo.
Isso não te assusta?
Ela hesitou.
— Não. Mesmo que um homem seja infeliz, poderemos realmente dizer que seria melhor ele não ter existido?
— De facto — disse eu. — Mas se esse homem espalhar o mal à sua volta?
— E se espalhar o bem?
— Oh, tens razão! Fazer nascer uma criança, impedi-la de nascer... é igualmente absurdo. É indiferente.
— Mas quando se deseja uma coisa já não é indiferente. Então já não é absurdo fazê-la, pois não?
— Talvez o meu erro seja não saber ainda desejar nada.
Ela riu-se:
— O teu erro? Não acredito que tenhas assim tantos erros!
Eu ia remando e o barco deslizava sem deixar rasto, muito calmo. Não ser nada senão esta espuma branca que sobe e se perde na toalha igual da água. Era preciso matar esta voz. A voz dizia: eu queria ser esta espuma. E ela disse: era preciso matar esta voz. A espuma nascia e morria sem voz.
Do alto de uma prancha de mergulho, um corpo moreno saltou para o rio; pares enamorados caminhavam pela margem com passos miúdos. Um domingo de paz. As horas fugiam-nos por entre os dedos. Longe dali, havia horas que se depositavam no solo, misturadas ao ferro fundido e ao aço. Todos os dias saíam das fábricas alemãs novos canhões, novos tanques."
Simone de Beauvoir, “O Sangue dos Outros”, Colecção Mil Folhas, nº 38, Público, 2003.

A segunda vez ainda está a ser pior que a primeira.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

PROCISSÃO

Graças a Deus que proibiram os foguetes! Acho que até nutro alguma simpatia pelos incendiários e pirómanos quando penso nisso. Não fora eles e a tragédia que causam todos os verões, ainda hoje teríamos de suportar as intermináveis alvoradas de pólvora feitas, precisamente às 8 da manhã.

O pesadelo começa com o silvo característico da pólvora em ignição, bem apertadinha num cartucho de cartão prensado. É o momento em que abrimos abruptamente os olhos e olhamos aflitos para o tecto branco ou não. Antes mesmo de sentirmos o sabor a pauta de música na boca, já o estrondo ecoa no ar, imitando o metralhar de uma metralhadora engasgada. Aqui iniciamos o processo da tomada de consciência: estamos na aldeia, em casa da avó ou da tia ou do primo ou sei lá quem do amigo que nos convidou, e é o dia da festa. Para ajudar à festa (a outra, a metafórica e não a da aldeia), os cães assustados que trocaram a liberdade por uns restos de comida (ou são escravizados pela espécie superior que suportam o seu cheiro e barulho em troca de alguma protecção para as cada vez mais inúteis capoeiras) começam a latir desalmadamente. As crianças também iniciam a berraria. Bastam alguns segundos para que o contágio seja total e todas as crianças das redondezas, dos 0 aos 6 anos, chorem almadamente uma vez que já a têm (a alma).

Seguem-se mais silvos seguidos da metralha. A partir de certa altura começamos a rezar para que, no meio do latido-choro-berro-metralha, consigamos escutar a falta do silvo. Sem silvo não há foguetes. Ás vezes parece que não vai haver mais nenhum foguete… deixámos de ouvir o silvo… mas entretanto lá aparece ele… que merda! Deve ter sido o fogueteiro que precisou de dar uma passa na beata para lhe avivar a ponta. Provavelmente já perdeu uma das mãos num foguete mal aparelhado. A dinamite saltou para fora do papelão atado com corda de sapateiro e roubou-lha. Às vezes também rouba um olho ou três dedos.

Bem feita!

Tudo acaba com os morteiros, uma espécie de foguetes iguais aos outros só que, em vez de se desmultiplicar em pequenas explosões, produzem uma única, forte e intensa, que perdura durante mais tempo nos tímpanos e ecoa se a aldeia tiver a companhia da serra. Tal e qual um peido.

Sem comer chegamos ao café. Os da terra bebem martinis, favaios ou brancos traçados. Nós, os lisboetas, engolimos com dificuldade a bica queimada.

É engraçado assistir à procissão.

Antes podemos participar na missa. Podemos porque realmente é assim. Os homens têm essa permissão. Podem ficar à porta da igreja, a conversar sobre a bola, os campos ou os outros. Uns fumam. Todos vão à vez ao café beber martinis, favaios ou brancos traçados. À hora da missa já há que arrisque uma mini. Dentro de portas estão todas as mulheres que não têm de ficar em casa a preparar o almoço e os homens a quem a vida castigou de maneira cruel. As crianças, mordomas e irmandade também lá estão, orgulhosas dos seus vestidos novos as primeiras e amaldiçoando as bebidas d’ontem os últimos. Os emigrantes, sejam eles da Suíça ou de Lisboa, estão lá todos. Já me esquecia do Padre e da Filarmónica.

Quando termina a consagração, inicia-se a procissão. À frente vai a irmandade que é responsável pela cruz e pelas velas. Antes do padre, ainda há tempo para as ofrendas ou cabaças que não passam de tabuleiros de comida e bebida oferecidas pelas mordomas para leiloar em favor da festa. Estas têm o privilégio de escolher quem carrega as ofrendas e os andores, já que cada uma foi responsável por enfeitar um dos santos que habita a igreja e que, na procissão, competem entre si em beleza e fartura de comida. Elas escolhem aqueles que os irão carregar pelas ruelas da aldeia enquanto acompanham, bem vestidas e penteadas, o fruto do seu labor nas semanas que antecederam o dia da festa. Depois novamente a irmandade que leva mais velas e figuras religiosas e depois é o padre e o presidente da junta, casa do povo ou associação de beneficência da aldeia. Estes têm direito a protecção suplementar, sob a forma de um palio erguido por 4 ou 6 voluntários que honrosamente se desculpam pela inexperiência, cadência, falta de jeito e tropeções que vão infligindo uns aos outros. A filarmónica, que entoa tristes músicas de marcha lenta com os seus reluzentes instrumentos e pautas brancas seguras com molas de roupa, segue em passo certo anunciando a procissão que termina.
No final vai o povo.

Não é aqui que entramos nós, os lisboetas. Nós entramos antes. Se não temos cuidado somos imediatamente intimados a desempenhar tão inusitada mas decisiva tarefa, fruto da desistência de algum previamente eleito que se baldou à última da hora. As bebedeiras têm destas coisas: fazem com que alguns não oiçam os foguetes e ignorem os irados despertadores das mães, avós ou tias que se cansam de os tentar abandonar o processo de destilação.

Somos depois fotografados por máquinas de filmar modernas e convidados a beber um martini, favaios ou branquinho traçado no café da aldeia, enquanto as pétalas, lançadas pelas viúvas que enfeitaram as varandas com colchas de linho tricotadas à mão, nos vão caindo dos cabelos empastados de gel.

Ainda sem comer, bebemos porque hoje é dia de festa!

terça-feira, 18 de setembro de 2007

A PRINCESA DO ALVA

Sentada nas margens do rio que um dia irá herdar, molha os pés com medo de pisar algum girino acabado de nascer. Apesar de muito abundantes no final do verão, são difíceis de encontrar. Normalmente vêm das ribeiras que se desfazem no leito limpo mas escuro por causa do fino húmus que se desfaz nos seus muitos buracos, casa das cabras cegas, trutas, enguias e cobras d’água. Gostam de se esconder por entre os seixos pretos, roliços e espalmados. Quando começam a ter patas, adora vê-los indecisos sobre o seu papel na natureza, também ela híbrida. Ora saltam, ora nadam, sem saberem lá muito bem o que fazer com tão estranhos apêndices.

É uma princesa branca e bela, como o são todas.

No Inverno fecha-se em casa, com medo do nevoeiro que sobe do rio. Principalmente de noite. O dia, quando vem despido e sem lágrimas, é aproveitado para namoriscar as videiras, o milho, os pinheiros e os castanheiros que fazem companhia às oliveiras. De vez em quando também visita as couves, os nabos e as batatas. Quando lhe apetece vai buscar umas cavacas só pelo prazer de as atirar à lareira.

É uma princesa branca e muito bela. Tem uma pele sedosa como teriam as flores se tivessem pele.

Vou visitar a princesa do alva menos vezes do que gostaria. Talvez umas três vezes por ano, não mais. Quando era pequeno ficava na sua companhia durante os três meses de Verão. Adorava ouvir as suas histórias. De quando em vez contava-me um ou outro dos segredos do campo. Nunca falava dos mistérios do rio. E esses eram imensos.

É uma princesa amada pelo seu povo, como o são quase todas.

Fez há pouco tempo 84 anos e o seu nome é Esperança.