terça-feira, 17 de abril de 2007

IRS

Se há coisa que detesto é a burocracia.

Papéis, assinaturas, carimbos e formulários nunca se deram comigo, nem eu com eles. Talvez seja por isso que tenho de me organizar compulsivamente (pelo menos uma vez de três em três meses). Por isso e para conseguir distinguir a cor do tampo da mesa do meu escritório.

Esta semana teve de ser. Arrastei até à última, mas lá me encaminhei para o meio dos meus queridos e desordenados papéis, emaranhados com restos de envelopes de publicidade, contas de telefone, gás e água, facturas de gasolina, papéis de recados, apontamentos de telefone esquecidos em “pos-it’s” que já não colam, breves reflexões em folhas de rascunho, listas de compras para o “continente on-line”.

Em busca das declarações do banco, seguros e facturas da farmácia. Bom título de filme.

Tudo isto seria demasiado banal, não fora o facto de, eventualmente, todo o processo poder demorar consideravelmente menos tempo. É que após os momentos de absoluto terror que me obrigam a separar extractos de conta das actas das assembleias de condóminos extraordinárias, sou invadido por uma espécie de paz interior. Quando mergulho na separação dos papéis sinto-me assim mesmo. Mergulhado… no mais profundo e silencioso fundo do mar… silêncio… solidão… uma pequena e leve sensação de enjoo… eu comigo mesmo num ambiente hostil, mas que me acalma e que pareço dominar, ao mesmo tempo que me causa uma certa claustrofobia com a pressão do mar a tentar penetrar os meus tímpanos e a certeza de que não posso fugir dali assim sem mais.

Nesses momentos de mergulho, olho-me nos olhos e já não sou eu que conduzo. Sou eu conduzido pelos papéis. Um colorido faz-me lembrar o livro que comprei (“Inteligência Emocional”) enquanto esperava pelo Bártolo no Saldanha; dois negros apontam-me o teatro que fui ver com a M., oferta dos suíços que abrigámos em casa durante uma semana antes do Natal; um pequeno e grosso, riscado no dorso, levou-me para junto do restaurante cabo verdiano dos anos do Tintim (e depois, também, da M.); um cardume amarfanhado e riscado em tons de azul mostraram-me novamente os Serviços do Hike de Torres Vedras e os textos que criámos para a Drave.

Sem saber como, calmamente nadaram junto à areia branca que ainda cobria a mesa do escritório e já se espalhara pelo chão e pela sala, como se tivessem sido descobertos do seu esconderijo, dois pedaços brancos. Eram os do “Litlle Children” de Todd Field , última vez que me sentei nos bancos coçados do Quarteto.

De repente são duas da manhã e ainda não foi hoje que entreguei o IRS.

1 comentário:

mai xinti disse...

é natural o enjoo... daí o ser só de três em três meses. Isso e uma necessidade compulsiva de guardar tudo o que é papel, como se as memórias aí ficassem retidas...